24/03/2009

CENAS DE VIADUTO

Estas cenas eu escrevi a pedido do Projeto Tertúlia e, depois, as compilei aqui, neste formato...
CENA I

(hora de almoço, uma mulher na faixa dos 50 anos, vestida de forma refinada mas discreta, sóbria, vem do lado da Igreja, em direção ao Largo. Pára junto ao parapeito que dá para o lado da Avenida Prestes Maia, despercebidamente ao lado de uma velha, negra, jogadora de buzios e cartas divinatórias, que termina de atender a um consulente/figurante)
Velha
(pro consulente) ... não cobro não, fio... o fio põe aqui na porquinha Vó o que bem quisé que a Vó leva lá pros carente da comunidade... (consulente coloca um dinheiro no cofrinho, se levanta e começa a ir embora, quando ela lhe dá o último recado) Mas o fio tem que abrir o jogo com a parcera, viu. O fio tem que dizer a que veio, pro fio não morrer mais cedo, mesmo tando vivo, viu, fio? Nossa Senhora de Oxum te acompanha...
(silêncio. A Velha arruma seu tabuleiro. A Mulher olha para a avenida, abaixo do viaduto, segurando uma bolsinha com fervor)
Velha
(quase num sussurro) Vem cá, vem, fia...
Mulher
(indiferente ao convite) Me desculpa, me desculpa, me perdoa, foi sem querer, me desculpa... (silêncio)
(a Velha começa, aos poucos, a cantarolar uns pontos de orixás, esfregando os búzios, sem pressa alguma)
Mulher
Ele veio e eu... eu...
(a Velha joga os buzios sobre o tabuleiro. Silêncio. Ela lê o jogo)
Velha
Hum...
Mulher
Maldito! Maldição! Eu não podia, não podia...
Velha
(olhando o jogo) Um lenço da cor da rosa...
Mulher
(agressiva) CALA ESSA TUA BOCA, velha imbecil! Mendiga!
(silêncio. A Velha continua a jogar o búzios)
Mulher
Eu tentei! Tentei, pronto. Vou fazer o que? Não consegui... E olha que eu moro aqui, bem perto. Mas fecharam tudo, não passava nem mosquito sem o maldito crachá! Eu não tenho culpa! Tá, eu tenho culpa, sim. Eu sei. Eu podia ter varado a madrugada, mas o Antonio vinha... Vai saber quando ele vem... Vem tão pouco... Ele disse que vinha... Não veio. Mas e se viesse? É tão... de vez em quando! É difícil de ela entender... Nem parece que foi mulher... Mas ela não foi mulher... o padre disse que ela era Santa... Santas perdoam, não perdoam?
(Velha cantarola um ponto de Oxum)
Mulher
Eu fiz o que eu pude... Não consegui, uai... Mas como é que vai perdoar quem nunca errou? Por isso ela foi lá pro céu... (silêncio, ela olha o céu) Tão longe, lá... (olha a avenida, com alívio) Pertinho... Eu não caibo no céu...
Velha
Joga, fia...
(Mulher mantém o olhar fixo na avenida)
Velha
O lenço rosa...
Mulher
Um bordado que a Mãe pediu pra eu acenar pro papa, quando ele viesse aqui na nossa terra...
Velha
Joga fora, fia... joga ele fia, joga...
Mulher
O Antonio vem tão pouco...
Velha
Põe o macho dentro do lenço também, põe, fia...
Mulher
(abre a bolsinha e pega o lenço rosa, mantendo-o preso somente pela ponta dos dedos) Não veio... Manhã cedinho, corri ali pro Largo... Quase que cheguei perto do Santo...
Velha
Fia... é o lenço, fia... só o lenço...
Mulher
Mas o Santo já tinha entrado no Mosteiro... acenei pro nada... Senti o peso da mão da Mãe aqui dentro, ó (apontando o coração)...
(a Velha levanta-se com muito esforço e com todo cuidado aproxima-se da Mulher, que não reage. Com muita delicadeza, a Velha abre a palma da mão, pedindo com o olhar que a Mulher lhe dê o lenço rosa. Pausa. A Mulher aquiesce. A Velha acarinha o bordado bem feito, alisa o tecido e com o lenço, enxuga os olhos da Mulher. Então, a Velha leva o lenço ao próprio nariz e soa o nariz com toda força, estendendo o lenço para a dona, como a devolvê-lo. Pausa. Badaladas do "sino" do Largo São Bento. A Velha sorri e esse sorriso puxa um sorriso da mulher, que aos poucos se afasta do parapeito e começa a rir com mais intensidade, ao que a Velha a acompanha, intensificando ainda mais o riso, até que ambas estejam em franca gargalhada e nem percebam o lenço rosa caindo viaduto abaixo)

CENA II

(um homem vem pelo Viaduto, na direção da Cásper Líbero. Jovem, bonito, barbeado, cabelo engomado, terno-gravata de grife, maleta 007 de primeira linha em uma mão e, na outra, um case de câmeras de filmar. Está sorridente, confiante e caminha muito calma e objetivamente pela "faixa central" do viaduto, até que, ao chegar ao meio, vira abruptamente à esquerda e vai para o parapeito de onde se avista o Vale. Pára, abre o case, instala duas câmeras com tripés, testa o som e todos os detalhes para a captação de imagens. Satisfeito, apruma-se, penteia-se, aciona o rec e vai para o parapeito. Escala-o, de forma a ficar somente com as batatas das pernas como apoio contra sua queda. Sorri)

Ele
"São as águas de março fechando o Verão", minhas senhoras, "é a promessa de Vida no meu coração", meus senhores.
Estamos de volta!!!! Respeitável público, benvindo a mais um Paredão. Meu nome é João. Mas podem me chamar de Prometeu, é o meu apelido. Trabalho ali, na Bolsa de Valores. Lugar de gente antenada. Volatizada! Agradeço sua atenção. Mas, por favor, não se distraiam: a faixa amarela é a sua segurança. Então, não a ultrapassem. Caso contrário, posso me apaixonar por vocês e levá-los comigo para o Sol! Combinado.
Não vou ocupar muito do seu tempo, porque se tem coisa que é verdade é que "o tempo é dinheiro". E, por falar nisso, eu sei. Eu poderia estar roubando, estuprando-mas-não-matando, ou matando, ou violando, subornando, articulando, gerando lobbies no grande mercado de capitais, ou negociando orgasmos, paraísos fiscais, divisas, dívidas, rasgando dinheiro ou barganhando o tempo alheio, mas NÃO, meus senhores... NÃO, minhas senhoras!
Estou no confessionário! E quero contar a todos o horror que vivi, hoje de manhã, ali mesmo, na virada da Florêncio de Abreu, eu vi um sujeito imundo cagar, bem ali. E depois plantar na sua merda uma flor muito cheirosa, dessas que chamam de dama-da-noite... E o perfume dela misturou-se ao perfume dele, quer dizer, daquilo dele. E eu fui levado ao Tribunal dos 40 deuses egípcios, que na sua balança puseram, num prato o meu coração e, no outro, uma pétala daquela flor. Como pesa, minha gente, um coração hoje em dia. O meu coração.
Então estou aqui, honestamente, com meus olhos voltados pra dentro. De braços abertos pra tudo que me venha e que me vá neste mundo, pra prestar um Tributo. Um tributo à Verdade. À minha própria verdade e que se dane a Universal.
Então, meu povo, agradeço seu olhar e convido todos vocês... para um LEILÃO! Quero leiloar minha permanência aqui, entre vocês, entre nós. Vamos!!! Está aberto o pregão. Qual será o primeiro lance, senhores?
Uma MOEDA, senhoras? Hein?! Não, não... Convenhamos: é muito pouco! Moedas eu tenho de sobra... e pesam na bolsa da alma... Então, quem dá mais!? Quem dá?
Será que ouvi direito, ali? Teria alguém me oferecido um BOM ÁLIBI que justifique minha parte nisso tudo? Será? Mas... não, obrigado. Obrigado, mas isso aí eu também tenho de monte, pra dar, vender e emprestar a juros de mercado... Vamos em frente!
Quem aumenta o lance, quem? O prêmio é de muita valia, meus senhores... é a minha desistência de "entrar pra História"... Hein?
Ah, sim, ali. O que? Não acredito! A coisa tá esquentando mesmo! Eu teria realmente ouvido alguém me oferecer um PERDÃO? Um perdão... Assim mesmo, in cash, sem álibi nem moeda? Uau!!! Confesso que estou bem tentado, viu... Um perdão, olha só... Mas não, não! Essa foi por pouco, bateu na trave mas saiu pela linha de fundo, porque, cá pra nós, cidadão: perdão de fora é chuva de bolha-de-sabão no deserto, né! Plóft! Melhor seguirmos em frente...
Vamos lá, o pregão está aberto, quem dá mais, quem dá mais? Ali, pois não! O que? Caramba! Um BEIJO! Hummmm... mas de que tipo? Iscariotes? Cleópatra? Helena? Julieta? Salomé? Bem, eu...
Como disse? Um ESPELHO? Um espelho!!! Cacete... essa foi de lascar, agora aguenta! Sim, sim... por que não um espelho? Já entendi... quer que eu troque esse mergulho no Vale por um bangue-jampe em mim mesmo, é isso? Bacana... Se nisso aí estiver incluso o rapel, eu acho que vou aceitar o lance... Dou-lhe uma... dou-lhe duas...
(surge o homem imundo, segurando as calças recém-erguidas, oferecendo um montículo da própria merda em uma mão e um punhado de damas-da-noite na outra)
VENDIDO PRA O CIDADÃO IMUNDO!
(desce do parapeito, guarda as câmeras no case e segue em direção à Casper Líbero)
CENA III

(breve video-tape da visita de João Paulo II ao Brasil, nos Anos 80. Música: "A Benção, João de Deus". Corta. 2009. Hora de almoço, duas garis surgem varrendo o Viaduto Santa Efigênia. Param para descansar ao lado de uma estátua-viva)

Mulher 1
(apreciando, descrente) E num dá vontade de passar o espanador?

Mulher 2
E tem gente que paga... Só nesse interim já vi mais de dez pingá molhado aí na canequinha... Até nota da amarelinha, eu vi... E troco é rima que não faz parte dessa poesia aí, não... Já te contaram a historinha da Cigarra e da Formiga, Suzete?

Mulher 1
(enquanto desembrulha um sanduba)
E vai me dizer que ela tá errada, é? Besta é nóis, Suzana, que ainda acredita que desconto no holerite é "coisa da vida"... Um dia o Silvério me falou que, seu Deus quisesse, eu ainda encontrava bilhete limpando sujeira que ninguém assina...

Mulher 2
Besta é tu, que pensa assim, fia dum capeta. Eu prefiro sair limpinha da vida a... a... sei lá, a pagar esse mico aí (estatuista), ó... Raça! (barulho de moeda caindo na latinha do artista) Cês tão criando um monstro, seus boió! Põe na poupança! Paga o carnê! Enfia no...

Mulher 1
Deixa o povo em paz, Suzana! Cada um vende o peixe que pode pescá...

Mulher 2
Me poupa desse papo besta, mulhé!...

Mulher 1
Ah, então quer dizer que não tá vendendo nada, não, é? Mavá!

Mulher 2
E eu vendo o que, possabê?

Mulher 1
E o papa, mulher?

Mulher 2
(segurando o vassourão de forma agressiva)
Por que é que tu não costura essa boca e vai recolhê de uma vez o monte, ali, hein?

Mulher 1
Fica esperta: o João Paulo já foi e já entrou um novo... E cadê de tu ir lá, debaixo da janelinha dele, abanar esse bendito lencinho rosa da tua mãe?

Mulher 2
Recolhe logo aquela merda, antes que passa o supervisô e eu levo a culpa junto!

Mulher 1
Tu tá nos dia, já?! (pausa. Ela acaba o sanduba, joga a embalagem no próprio carrinho, se levanta, se espana) Por que é que tu não pega o lenço rosa, Su... aquele bordado pela tua mãe...

Mulher 2
Tu qué sentir o gosto daquele montinho nessa tua língua, ocê qué?

Mulher 1
Põe o papa dentro dele, mulhé...

Mulher 2
(olhar vidrado na direção do Mosteiro) Inda outro dia ele não tava ali mesmo, no Largo? Quase que consegui chegá perto, foi não? (pausa) Bóra...

Mulher 1
Ergui minha vassoura bem na hora que ele fez o sinal da bênça... (beijando a vassoura) Meus dias tão ganho, agora! (aproximando-se da colega) É o lenço, Su... só o lenço...

Mulher 2
(recompondo-se, fria) Fica aí. Fica e pede pro seo Menezes não me perguntar docê...
(segue pelo viaduto, varrendo a guia e deixando os montinhos pra ser recolhido pela colega)

Carla
(parando uma última vez, diante do/a estatuista) Se tu fosse Santo Antônio, te dava vintão!

(segue em direção ao primeiro dos muitos montinhos de sujeira recolhida da guia)

Um comentário:

TATO disse...

Enfim Carlos consegui ver seu blog...
Esse texto é muito bom cara, estilo próprio.

Abraço.
TATO.