23/02/2009

ROTEIROS PARA TELA

NASCIDA FORTE!

Amanhece (mais para noite do que para o dia, ainda).

Trilha: o pulsar de um coração.

A câmera focaliza, ao longe a Estação da Luz e move-se, “varrendo” o fim da madrugada na região da Igreja Sta Ifigênia. Neste trajeto, ela flagra, sobre uma grande esteira de papelões, um grupo de mendigos, em situação bem avançada de rua. Três dormem, três mantêm acesa uma fogueira, dois moleques fumam craque, um casal trepa.

A câmera continua o trajeto até se afixar em uma mulher negra de 80 anos, postada à escadaria da Igreja da Santa Ifigênia. Vestida no melhor estilo da época de sua mocidade (do ponto de vista de sua raça), ela olha para a porta fechada da igreja e seu olhar é de extrema expectativa, vasculha cada milímetro da porta da igreja, quer. Em seus dedos, um rosário manipulado quase automaticamente.

Pulsa o coração.

Na escadaria ela acende uma vela. Ao lado da vela, ela coloca um porta-retrato. Não interessa o que está nele: é a lembrança o que importa. O rosário viaja em suas mãos mas é uma reza africana o que ouvimos esparsamente sussurrado por seus lábios.

Câmera recua e gira na direção do Viaduto e a imagem torna-se sépia (ou pb).

É o viaduto atual, deserto. Ao centro dele, um homem negro, de uns 60 anos, muito bem apessoado, preparando meticulosamente um caixa de engraxate: ele a monta, limpa e arruma cuidadosa e esteticamente cada potinho num recipiente apropriado acoplado à caixa; faz o mesmo com suas três escovas. Com suas flanelas, ele lustra seus surrados sapatos, nos quais brinca tirando um batuque muito bem apurado. Depois ele as limpa e guarda. Por último, lustra carinhosa e demoradamente o banquinho estofado do cliente e, depois deste, o seu próprio, existente na própria caixa, ao nível dos pés do cliente.

Senta-se e, com as palmas das mãos, tira um batuque brejeiro. Então vão surgindo (em fade), uma a uma, seis crianças, com idades entre 4 e 12, dois meninos e quatro meninas. O menino mais velho senta-se ao pé do engraxate e repassa, tim-tim-por-tim-tim o ritual da preparação, enquanto três das meninas dançam ciranda e o menino caçula corre brincando com sua roda. A quarta menina, no entanto, olha para a câmera, num primeiro momento surpresa. Depois, vem correndo em sua direção, fazendo desaparecer atrás de si a imagem do sapateiro e as outras crianças. Então, a imagem da menina que vem funde-se com a velha...

O pulsar do coração intensifica-se.

Quando se recompõe, depara-se com um dos mendigos acocorado em sua vela, tentando acender uma bituca. Ela tenta enxotá-lo mas, ao vê-lo também um negro com idade avançada, capitula. Ele se levanta e encara-a nos olhos. Isto dura um bom tempo, ao som de um ponto de Iansã (ref.: http://www.youtube.com/watch?v=ZL9GZzted9E). Então, o homem aponta para a porta da Igreja e diz:

— Nascida forte! — diz ele, afastando-se e soltando baforadas da bituca.
— Ifigênia... — balbucia ela.

O pulsar do coração intensifica-se.

Ela volta a olhar para o Viaduto e a cor dele volta ao sépia/pb. Surge, “saindo da lente da câmera”, uma mulher de quase quarenta anos, em correria para o centro do Viaduto, perseguida por um grupo de agentes do Dops (som de patas de cavalos). Do outro lado do Viaduto para cá, outro grupo deles. Eles a cercam com uma ciranda. Despejam de sua bolsa livros universitários, fazendo com estes uma pilha ao centro do círculo, à qual ateiam fogo e, ao redor da qual, dançam macabros. A câmera fecha no olhar da mulher negra, que mantém-se altiva e dignamente em pé, e retorna com velocidade para a velha negra, fazendo a imagem evaporar-se e a cor do Viaduto voltar ao normal.

O dia está amanhecido. A câmera gira em 360º, revelando o zig-zag cotidiano de transeuntes e comércio.

A velha apaga a vela e recolhe o porta-retrato. (Com a câmera “colada” em seu encalço) ela pega sua sacola e caminha em direção ao Viaduto. Ao cruzarem com ela, transeuntes estranham.

Quando ela chega ao centro do Viaduto, aproxima-se do parapeito, voltada para o Vale do Anhangabaú, para o qual ela abre os braços e começa a girar, a girar, agir...

A cor volta ao sépia/pb e surgem, aos poucos, fiéis de um terreiro do Candomblé, uns tocando atabaques, outros dançando, outros adorando... Então, da mesma forma, desaparecem um a um, até que a cor volte ao normal.

Ela pára. Agacha-se até sua sacola e, dela, tira um tabuleiro e seu suporte, um banquinho e, sobre uma toalhinha cuidadosamente rendada, ela prepara seus búzios para mais um dia de trabalho...

De um plano superior (prédio, helicóptero, sei lá), a câmera fecha nela e vai abrindo, abrindo, até que ela se torne um grão de areia naquele mar de gente, no Centro de São Paulo...

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