14/11/2008

TEATRO

E aí, Tio Sam?
Que tal um "remember" dessa "bad trip" pela invenção idiota do "seu quintal"?

O BOM VIZINHO

Personagens
Um Homus-Brasilis
Zé João, O Apresentador
Um Telespectador
Sam, Adolescente
A Rainha
Hitler
Tio Sam
Nelson Rockfeller
Radiolocutor 1
Uma Dona-de-casa
Getúlio Vargas
Radiolocutor 2
Berent Friele

CENA 1 – A Abertura
Um Índio rega duas mudas de pau-brasil enquanto dança e canta, em tupiniquim/tupinambá:

Homus-Brasilis
Ndirekuábi iandé ramüi mbaé puéra aityg
Apoó mbaé ri jajerobiá
Iandé ramüi remiepák potá, teiñé aú guéra
Té! Oipotán-eté iandé ramüi rekobiar até iandéve

Batem palmas. Ele pára e vai atender. Surge em cena um pacote com uma bandeirinha portuguesa estampada. Ao abri-lo, surge um fado. Encantado, ele entrega uma das suas mudas e, enquanto vai vestindo os trajes de português, vai repetindo o refrão acima com sotaque lusitano, que aos poucos vai se transformando num sambinha. Novas palmas. Ele pára e vai atender. Surge agora outro pacote, com bandeira estadunidense estampada, o qual, ao ser aberto, dá vez a um som tecno destoante. Enquanto troca os trajes luso-brasileiros pelos norte-americanos, ele vai adaptando o refrão acima para aquele sotaque. Terminado, ele liga a TV e assiste à queda do WTC. Silêncio. Atônito, ele canta solenemente, em Inglês, estes versos do Hino Nacional Brasileiro:

From this land´s son you are the gentil mother
Beloved nation, Brazil!

CENA 2 – O Programa
Vinheta de abertura do programa. Cinco tops.

Vinheta
Num oferecimento do “Livro do Apocalipse – O Fim do Mundo em 22 Capítulos” está no ar o reality-show “O BOM VIZINHO”! (Entra, festivamente, Zé João, o apresentador do programa)

Zé João
Olha o povo pau-brasileiro aí, gente! Eu sou José João Brasileiro Qualquer da Silva, o seu apresentador. Hoje o dia está quente. Às 9h30 desta manhã the wonderfull word ruiu via satélite, ao vivo e a cores, mudando a linha do horizonte à partir da Ilha de Manhattan. Uau! Vamos, agora, ouvir o que é que pensa o nosso telespectador que já está na linha. Alô! Qual é a sua sugestão para essa nossa edição especial?

Telespectador
Eu queria saber por que foi que meu cumpáde Benedito resolveu botar no moleque dele o nome de Benny Diet...

Zé João
Muito bem! Nosso povo quer saber como foi que o Brasil virou BRAZIL... (Vinheta) Vamos dar um salto para trás e voltar a 4 de Julho de 1783...

CENA 3 – A Rainha
Entram a Rainha e seu filho Sam, adolescente revoltado...

Sam
You mother fucker! Me deixa em paz. Eu quero assumir meu próprio destino entre os poderes da Terra...

Rainha
(Usando a palmatória) Toma, toma e toma! Onde já viu uma coisa dessas, menino petulante?! Eu devia era ter feito contigo como fizeram os portugueses, quem enviaram sua escória para criar seus filhos. Eu não. Dei tua formação às minhas melhores empresas, camponeses e burgueses do glorioso Império Britânico...

Sam
Minha mãe! De uma vez por todas tente compreender que eu tenho a missão divina de civilizar tudo o que está entre o Atlântico e o Pacífico...


Rainha
Entenda você, moleque, que nós precisamos ficar unidos para sermos o máximo! Não viu como botamos os malditos franceses para correr?

Sam
Mas que cara-de-pau, a sua! A senhora me jogou contra eles e contra a indiazada naquela sua Guerra dos Sete Anos e o que foi que eu ganhei em troca disso? Falta de Justiça! Leis intoleráveis! E tropas e impostos assassinos!

Rainha
É que a mamy não anda lá em boa situação financeira, darling...

Sam
Agora chega. Eu não aceito mais ficar isolado no litoral. Exijo meu lugar nas terras conquistadas de leste a oeste!

Rainha
(Sinistra) Você anda se drogando com aquelas idéias esdrúxulas do Iluminismo, Sam?

Sam
Viva a razão! Viva a ciência! O respeito à humanidade! Eu vou virar esse mundo do avesso! (A Rainha empunha a palmatória) Isso não vai adiantar, minha mãe, ainda mais agora que me aliei aos franceses e aos espanhóis para enfraquecer a senhora no cenário europeu!

Rainha
(Melodramática) Oh, golpe mortal! Uma mãe é para treze colônias... mas treze colônias não são para uma mãe!

Sam
Treze colônias uma ova! Agora eu sou os Estados Unidos da América! (Estende-lhe um contrato e uma pena) Assine aqui...

Rainha
(Assinando) O Tratado de Versalhes...

Sam
Viva o Livre Comércio! A propriedade privada! Os direitos iguais!!!

Rainha
E agora, filhote, o que vai fazer?

Sam
Vou desbravar o Oeste...

Rainha
Mas, Sam... os índios!

Sam
Índio bom é índio morto. A senhora me entrega o Oregon e eu compro o Alasca da Rússia e a Lousiana de Bonaparte. Depois arranco dos espanhóis a Flórida, o Texas, a Califórnia, o Utah, o Arixona, Nevada, o Novo México, o Colorado...

Rainha
Sam... e quanto a mim?

Sam
Bem... a gente mantém boas relações no comércio e na guerra... Afinal, mãe é mãe, ora bolas!
(Ambos se abraçam, chorosos. A Rainha sai)

CENA 4 – A Crise
Adulto, Tio Sam lê no jornal a manchete: “Nova York 1929 – Crack na Bolsa de Valores”

Tio Sam
Ah, Europa ingrata! Simplesmente resolveu recuperar as próprias forças e não comprar mais nada de mim... Estou falido. Meus desempregados já somam milhões... (Liga o rádio)

Radiolocutor 1
Acabou-se a farra! Os bancos confiscam terras com produção encalhada e a metereologia prevê mais chuvas de ex-milionários dos arranha-céus!!! Bye-bye american way of life!!!

Tio Sam
(Desligando o rádio) Shit!!! Ah, é?! Pois eu exijo imediato pagamento de todo o dinheiro que, nos bons tempos, eu andei emprestando tanto aos europeus como a esses latinos aqui debaixo! E que se danem os uivos ultranacionalistas...

CENA 5 – Show da Realidade 1
Vinheta do Programa. Volta Zé João, o Apresentador...

Zé João
Voltei! Essas idéias ultranacionalistas de “defesa da nação e das glórias do passado” são fé-cega-faca-amolada. Por isso, vamos à primeira rodada do nosso reality-show. E o nosso primeiro candidato é... (alguém na platéia) Ele! Aplausos!!! Vamos à nossa pergunta: — Se o Artigo 13º da nossa Constituição determina que a Língua Portuguesa é o idioma oficial brasileiro, porque cargas d´água nos orgulhamos tanto em falar reality-show? TEMPO! (Vinheta de tempo) Não sabe? E talk-show? Também não? E milkshake, feedback, email, emitivi, software, durgstore, marshmellow, videogame, fashion-week, enibiei, efibiei, marketing, cici-eiei, merchandising, maquichiquem, pópicorne, popstar, piercing, money, world music, ai-lóviu-beibe ou the buquis onde teibol? Responda, por que? Tempo esgotado. O prêmio continua acumulado... Voltemos ao nosso folhetim. O Mundo infartava, na Europa de 1933...

CENA 6 – O Comércio de Compensação
Preocupado, Tio Sam ouve no rádio um inflamado discurso de Adolf Hitler...

Hitler
Homens e mulheres da Alemanha! O Movimento Nacional Socialista e eu chegamos ao poder, com a bênção dos grandes nomes de nossa história. O Reich Alemão vai dar um pontapé na bunda do marxismo, com o apoio da Itália de Mussolini e do sonho imperial japonês de Hideki Tojo. Vamos massacrar a fome! Aniquilar o desemprego! Trucidar a inflação! Esmagar os altos impostos! E humilhar a moeda das grandes potências, trocando os nossos conhecimentos, tecnologia e produtos pelos produtos, tecnologia e conhecimentos das nações espezinhadas! Amém! (Ouve-se os aplausos da multidão)

Tio Sam
(Desligando o rádio) Você me paga, Chucrute! (Disca o telefone) Nelson? Eu tenho um trabalhinho para você...

Nelson Rockfeller
Desde os tempos do Velho Oeste os Rockfeller estão às suas ordens, Tio Sam...

Tio Sam
Eu sei. Obrigado. É sobre esse maldito comércio de compensação... Quero esses chucrutes fora do meu quintal!

Nelson
Mas desde 1890 nós não damos as cartas na Argentina, no Chile, no Haiti, na Nicarãgua, na Coréia, na China, no Panamá, nas Filipinas, em Porto Rico, em Cuba, na Samoa, nas Honduras, na República Dominicana, no México, na Rússia, na guatemala, na Turquia, em El Salvador...?

Tio Sam
Ainda é muito pouco! Eu quero muito mais. E a América Latina está repleta de colônias alemãs e italianas...

Nelson
Bem... e que tal o big stick?

Tio Sam
(Exaltado) O quê, o porretão? Mas nem que a vaca tussa! Isso seria dar a faca e e o queijo na mão do Chucrute. Nada disso, meu rapaz. Vamos mudar o frasco desse perfume e transformar em adubo o atrevido que anda querendo colher as flores do nosso jardim.

Nelson
Virar esse jogo será uma mera questão de marketing...

Tio Sam
Estou lhe enviando uma maleta com tudo o que você vai precisar para coordenar minha Política de Boa Vizinhança, Nelson. God Bless America! (Desliga e vai para a platéia)
Como vão vocês, meus queridos vizinhos?! Eu sou seu big brother, podem me admirar. O que passou, passou. Os tempos agora são outros, estamos todos no mesmo barco, pois somos todos filhos da mesma América! Eu até reconheço a nossa igualdade jurídica... palavra de Tio Sam! I´m cool!!! Vocês vão me adorar, eu prometo... I Love You!!! Eu sou o seu bom vizinho... I Want You!!! (Volta ao palco)
Isso. A História prova que, melhor do que acorrentar o corpo, é seduzir a alma!
(Sons de guerra. Ele olha pela janela) Xiiiii... a guerra começou. Não tenho muito tempo...

CENA 7 – Show da Realidade 2
Vinheta do programa. Volta Zé João...

Zé João
Vamos à segunda rodada do nosso “Show da Realidade”. Quanto mais a imbatível marinha britânica procurava bloquear o famigerado comércio de compensação, mais simpatias o Eixo ganhava na América Latina. Onde está o nosso próximo candidato? Aqui está ele! Boa sorte e vamos à pergunta: — Todos sabem que a bilhardária Família Rockfeller, manda-chuva do petróleo, foi essencial na construção do império de Tio Sam. Que diabos tem ela a ver com a vida brasileira? TEMPO! (Vinheta de tempo) Tempo esgotado. Que pena. Voltemos agora ao nosso folhetim. Estamos no princípio dos Anos 40...

CENA 8 – Nelson Rockfeller
Nelson Rockfeller entra, com um cartaz escrito “BIRÔ INTERAMERICANO”, que ele dependura na parede, e abre a maleta entregue por Tio Sam...

Nelson
Hummmmm.... perfeito! Uma carta branca do Conselho Nacional, algumas agências estatais e privadas, 140 milhões de dólares, mais de 1.200 pessoas trabalhando dentro e fora de casa e o apoio do alto empresariado! Vamos ao trabalho. Em primeiro lugar eu preciso de um bom pretexto para entrar na casa dos vizinhos...
(Reflete) Yes!!! Os valores comuns entre a nossa cultura e a deles!
(Toca o telefone, ele atende, impaciente com a interrupção) Você ligou para Nelson Rockfeller, coordenador geral do Birô Interamericano para as Relações Culturais e Comerciais com a América Latina. No momento não posso lhe atender. Deixe seu recado após o bip que eu...

Tio Sam
(Espirituoso) Nelson, ouça essa piada engraçadíssima. Sabe o que disse o passarinho à águia que o atacou? (Pausa) Piu-piu! (Ambos gargalham muito) Agora falando sério, Nelson, que lorota é essa de “valores comuns” com essa gente? Temos é que inventar “ideais comuns”, isso sim. Que tal solidariedade hemisférica, hein?

Nelson
(Admirado) Defesa da soberania das Américas...

Tio Sam
Panamericanismo!!! Pense nisso enquanto vou ao Brasil... God bless America! (Desliga)

Nelson
(Fechando a maleta, orgulhoso) Los macaquitos vão temer e amar Tio Sam na mesma proporção, isso eu prometo! Mas... por onde devo começar? (Pausa) Eureka!!!

CENA 9 – O Cinema
Ao telefone...

Nelson
Loraine, ponha Hollywood na linha, please... (Pausa) John! Mãos à obra, meu amigo. Temos que encantá-los com os seus filmes. Você tem que fazê-los acreditar que Tio Sam é bom, bonito, bacana, moderno, forte, paizão e amigo. Temos que fazê-los dançar o foxtrot, fumar nossos cigarros, beber gin com soda e sonhar com Beverly Hills. Pau na máquina, John! Bye-bye! (Desliga)

Entra em cena uma dona-de-casa brasileira, imersa nos seus afazeres, fumando cigarro com piteira, no estilo de Rita Hayworth. Toca o telefone, ela atende...

Dona-de-Casa
Hellô?! Dircinha!!! Que bom que me ligou. Acabei de vir da cabelereira. Eu consegui, querida! Estou a Greta Garbo em pessoa. Juro! Me diz: o que vai fazer hoje à tarde? Nada? Então vamos ao leilão da Darci Vargas? É para a campanha do Soldado Desconhecido... ela vai leiloar as luvas e a bolsa usadas pela Claudete Colbert no filme “Mulher de Verdade”, menina! Não é o máximo? Eu torro a mesada do Jurandir mas não deixo de comprar essas jóias... Mas não podemos nos atrasar, viu! Senão corremos o risco de levar socos e pontapés como aconteceu na fila dos ingressos para o filme do Disney... Também pudera! Zé Carioca e Pato Donald juntos! É o máximo! Como? Você não ficou sabendo disso? I don´t believe, Dircinha? É só nisso que falam os jornais, o rádio e o cinema! Vai me dizer que também não está sabendo que a Ginger Rogers brigou de novo com o Fred Astaire?! Acorda, Dircinha!!! Vai, me encontra daqui a meia hora na loja de discos. Eu tenho que comprar o último do Sinatra, senão eu morro. Que olhos, deus meu! O Jurandir detesta ele... Nos vemos já, já, Dircinha!! Goodbye. (Desliga e sai)

CENA 10 – Show da Realidade 3
Volta Zé João, o apresentador, tocando pandeiro...

Zé João
(Cantando) “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar...!” Voltamos agora com a terceira rodada do nosso “Show da Realidade”. (Vinheta) Aplausos para o nosso próximo candidato. Muito bem. O que fazia Tio Sam salivar pelas terras de Cabral era o fato de aqui existir a maior concentração de riquezas minerais e matérias-primas para seu esforço de guerra. Vamos à nossa pergunta: — Qual era a postura do Governo Brasileiro em relação a isso tudo? TEMPO! (Vinheta de tempo) Tempo esgotado, que pena. O prêmio continua acumulado. Voltemos ao folhetim... Meados dos Anos 40... (Sai)

CENA 11 – Vargas
Música brasileira. Entra Getúlio. Toca o telefone, ele atende...

GV
Trabalhadores do Brasil!

Tio Sam
Mr. President! É seu bom vizinho do Norte...

GV
Ah, sim...

Tio Sam
Os tempos estão difíceis. A hora é de união. Somos filhos da mesma América...

GV
Sei... E quanto ao meu café que o crack na sua bolsa de valores fez encalhar, azedando toda a minha economia?

Tio Sam
Isso é passado. Além do mais, bem que o senhor fez bom proveito daquela crise, não foi, mister Vargas?

GV
Vamos ao assunto...

Tio Sam
É a nossa liberdade que está em jogo. Eu, sozinho, dou plena conta da defesa do continente inteiro... Mas quero contar com suas bases aéreas e navais, principalmente as do seu Norte e Nordeste. Sabe como é, né? O Atlântico... A África...

GV
Em troca...

Tio Sam
Em troca seu país terá como aliado a maior potência militar do continente!

GV
Meu território eu mesmo defendo. Mas o senhor pode me ajudar com armas e munições, o que acha?

Tio Sam
(Confidencial) Seria perigoso. Tenho informações que, na sua alta oficialidade, há simpatizantes do Chucrute...

GV
Ah, sim?

Tio Sam
Mas pense na solidariedade hemisférica, mister Vargas! Leve em conta o dinheirão que desde 1921 eu venho injetando em seu país! Saia de cima do muro!

GV
Em cima do muro, eu? O que é que o senhor me diz, então, da vista-grossa que venho fazendo ao ceder-lhe a nossa distribuição de energia elétrica e o controle de tantos portos e ferrovias, além das suas multinacionais?

Tio Sam
Alto lá! Minhas empresas têm a maioria brasileira de acionistas, como dita a sua Constituição...

GV
Testas-de-ferro! Até a entrada daquele seu estranho refrigerante negro eu facilitei... Vamos encurtar o assunto. Você quer o Brasil posicionado contra o Eixo mas não quer me ajudar a reequipar minhas forças armadas. Então eu peço uns 20 milhões de dólares para a construção da minha Companhia Siderúrgica Nacional. O que me diz?

Tio Sam
Nem que a vaca tussa!

GV
(Contemplando um cartão-de-visita nazista) Não tem problema, meu bom vizinho... eu me arranjo. Até mais! (Desliga o telefone e liga o rádio, onde ouve o final de um discurso seu, na “Hora do Brasil”) Hummm... preciso ensaiar um pouco mais!

CENA 12 – Rádio e Imprensa
Entra canção “Cantores do Rádio”, de João de Barro e Lamartine Babo. Getúlio arruma-se com aprumo e prepara seu charuto. Ao fim da canção, ele sai...

Rádiolocutor 2
E agora, com o patrocínio da Standard Oil Company of Brazil e com material fornecido pela United Press, vamos ao nosso “Repórter Esso”...
(solta trecho gravado desse programa. Entra Berent Friele)

Berent Friele
(Desligando o rádio) Rádio! Custo-benefício dos melhores! Está feita a cabeça dos cucarachos... Ah, América, terra da liberdade e das oportunidades!!! O sonho americano é um Mundo americano... (Toca o telefone) Berent Friele, coordenador do Birô Interamericano no Brasil!

Nelson
É Nelson, Berent! Como vai indo nossa filial por aí?

Berent
De vento em popa, chefe! Já estamos em quase todas as capitais brasileiras...

Nelson
Eu sabia! Deus abençoe o poder dos meios de comunicação de massa!!!

Berent
Concordo, senhor. Por isso não pode se repetir uma gafe como aquela do jornal da Broadway... “Carmem Miranda é o que de melhor existe na arte asteca”!

Nelson
Uns idiotas! Por falar nisso, Berent, como estamos indo com relação à imprensa brasileira?

Berent
Fácil, chefe! Foi só investirmos um bom dinheiro em seus anúncios que os jornais ficaram dóceis como gatinhos...

Nelson
Dinheiro é tudo! E isso vai ser o tiro de misericórdia nas agências de notícia alemãs e italianas daí... Viva! Olha, Berent. Estão indo para o Brasil alguns dos nossos jornalistas, que ficaram impressionadíssimos com as belezas naturais que o Orson Welles captou naquele documentário...Em troca, mande vir para cá alguns jornalistas brasileiros. Assim eles aprendem como é que se faz imprensa de verdade...

Berent
Perfeitamente, chefe. Mais uma coisa. Como a escassez da guerra, andam me pedindo licença para o uso de papel norte-americano...

Nelson
Negativo. Só dê a licença para os jornais alinhados com Tio Sam. E mande ver na chuvarada de panfletos e posteres exaltando nosso maravilhoso estilo de vida, ok? Um abraço, Berent. E te espero em casa no Dia de Ação de Graças. Bye! (Desliga)

CENA 13 – Infra-estrutura geral
Tio Sam contempla, num globo terrestre, a expansão da influência do Birô Interamericano...

Tio Sam
Esse Nelson Rockfeller é um dos meus melhores espermatozóides! Já temos a classe média latino-americana nas mãos... Daí para o povão estar falando, ouvindo, pensando e comprando em Inglês será só uma questão de tempo! What a wonderfull world!!!
(Disca o telefone) Nelson?! Ouça essa piada... O pequeno Hard perguntou ao grão de popcorn por que ele não saía imediatamente do seu caminho. Sabe qual foi a resposta do grãozinho? “É porque ainda não é meio-dia e eu não explodi!” (Ambos explodem em gargalhadas)
Agora vamos aos negócios. Creio que seria simpático com essa gente se déssemos alguma atenção à coisas como educação e ciência, não acha?

Nelson
Sem dúvida, senhor. O mesmo esquema de falso intercâmbio é o suficiente. Mas poderíamos também reforçar o abastecimento alimentar...

Tio Sam
Claro que sim. Principalmente nos locais em que estão nossas tropas...

Nelson
(Eufórico) Sim, sim! E um bom programa agrícola também acabaria com a fome nesse país, o que fortaleceria bastante nossas relações com os brasileiros...

Tio Sam
Cai na real, Nelson! Eu não estou aqui pra matar fome de ninguém. Uma distribuição básica às unidades militares americanas e brasileiras já está de muito bom tamanho...

Nelson
Como queira, senhor... me desculpe.

Tio Sam
Além do mais, meu rapaz, estou terminando de produzir uma bomba que porá fim nessa guerra e mudará o mundo a nosso favor. Por isso, agoara o que eu mais quero é garantir mais e mais mercados. Então vamos estimular o comércio e a indústria de bens de consumo!!!

Nelson
Nesse caso, senhor, precisamos expandir os sistemas de transporte. Isso vai agilizar o vai-e-vem de matérias-primas e produtos...

Tio Sam
Faça isso, então. Eu quero todas as exportações daí! Compro tudo, ao preço que eu quiser pagar!

Ambos
(Cantando) “We are the champions, my friends...!”

CENA 14 – Show da Realidade 4
Vinheta do programa. Volta Zé João...

Zé João
Cabeça erguida, meu povo! A gente é penta-campeão e é também a esquina do mundo, onde o mundo todo se encontra pra uma cervejinha, uma conversa fiada e planos de dias melhores! Vamos a mais uma rodada do nosso “Show da Realidade”. Aqui está o próximo candidato. Nos Anos 40, o Birô Interamericano inventou uma pá enorme de pesquisas de opinião para mapear nosso poder aquisitivo... Então, nossa pergunta é:
— Até quando o brasileiro vai continuar achando que o melhor sempre vem de fora?
TEMPO! (Vinheta de tempo) Tempo esgotado. Agora o que está feito, feito está...
O Programa O Bom Vizinho vai ficando por aqui. Gratos pela audiência, nós deixamos vocês com a última parte do tragicômico folhetim, no fim dos Anos 40... (Sai)

CENA 15 – O Fim do Birô

Tio Sam está brincando com o globo terrestre quando soa o telefone. Ele atende...

Tio Sam
I am the King of the World!

Nelson
Missão cumprida, Tio Sam.

Tio Sam
Sim, meu caro... A América Latina tornou-se finalmente uma linda baiana de sombrero dançando tango na Cordilheira dos Andes, completamente apaixonada por mim... Parabéns!

Nelson
No Brasil acabei de falar com mister Dutra e os ventos não poderiam ser mais favoráveis à nossa causa!

Tio Sam
Brilhante! Um general anticomunista no comando do país latino-americano mais forte... Isso é tudo o que eu precisava.

Nelson
Pode escrever o que eu digo, senhor: em poucas décadas não existirá quem possa nos impedir de vender nossas mercadorias num único mercado que emende o Ártico ao Cabo de Horn!

Tio Sam
Agora eu só preciso ficar atento a esses grupinhos nacionalistas de plantão, com suas idiotices de elevação do padrão de vida das massas ou de proteção para sua produção interna...

Nelson
Eu sugiro que o senhor se alie aos militares desses países e os estimule a derrubar os governos que sejam hostis aos nossos propósitos, senhor...

Tio Sam
Bem pensado, muito bem pensado. Vou começar agora mesmo a mexer meus pauzinhos na Guatemala, na República Dominicana, no Brasil e no Chile...

Nelson
Viva o american way of life!!!

Tio Sam
Yes!!! (Desliga, ao som de “Moonligth Serenade”)

CENA 16 – Minutos de silêncio

O Homus-brasilis retorna, totalmente americanizado. Liga a TV e assiste ao atentado do WTC. Põe-se de luto e acende uma vela. Parte para seu pronunciamento, durante o qual vai reempacotando as coisas que aceitou em troca das mudas de pau-brasil...

Homus-brasilis
Brasileiros e brasileiras da Latina América... eu venho pedir a todos um minuto de silêncio pelos milhares de civis norte-americanos que viraram paçoca no horror do WTC... Um minuto, por favor. (Pausa)
Muito obrigado. Quero aproveitar agora e pedir a todos mais 13 minutos de silêncio pelas dezenas de milhares de civis japoneses que viraram pó-de-arroz debaixo das horrorosas bombas norte-americanas lançadas sobre Hiroxima e Nagazaki... (Pausa)
Obrigado, muito obrigado. Que diferença existe, afinal, entre um civil e um militar, quando mortos?
Agora eu peço mais 30 minutos de silêncio pelo horror na morte de tantos civis e militares no Vietnã... e no Afeganistão... e no Iraque... (Pausa)
Obrigado, muitíssimo obrigado. Por fim, façamos um dia de silêncio em homenagem aos milhões de terráqueos mortos ou anulados pelo poder militar, econômico, institucional, diplomático e cultural de Tio Sam! (Pausa)
Um horror...

Diante do público, ele deposita as mudas e a vela acesa, sobre as quais fecha-se um pino de luz, deixando-o no escuro, de onde vem sua voz...

Eu não sei quando nem como me tornei quem eu sou... Mas será que eu sou realmente assim?

A luz vai se abrindo, aos poucos. Ao redor das mudas e da vela ele dança, cantando...

Ndirekuábi iandé ramüi mbaé puéra aityg
Apoó mbaé ri jajerobiá
Iandé ramüi remiepák potá, teiñé aú guéra
Té! Oipotán-eté iandé ramüi rekobiar até iandéve

Joguei fora todos os bens de meus avós
Do que colho por aí, vanglorio-me
Nossos avós gostariam de Ter visto, mas não viram
Eis aqui o que tanto quiseram para nós os nossos avós...

A luz vai diminuindo em resistência, até o blecaute.
Escrita entre junho e agosto de 2003

Nenhum comentário: