14/11/2008

TEATRO

Embasbacado com a cara-de-pau do Bush, eu escrevi essa peça... Agradeço imensamente ao Beckett por isso, pois, segundo meu amigo Rogério Toscano, eu "chupei" dele a idéia da estrutura (mesmo tendo escrito antes de ter lido "Esperando Godot")! As idéias são assim, não são? Partículas aéreas à mercê das antenas parabólicas que as queiram captar...
A ROTA DOS VENTOS


Os dois entram, caminhando ombro a ombro.

Vozes [olhando ao redor] As campinas virgens!

Ambos se enxergam.

Güido
Olá. Eu sou Güido, Schmilen.

Schmilen
Olá. Eu sou Schmilen, Güido.

Silêncio. Uma rajada de vento os surpreende. Ambos abraçam-se.

Vozes
O Vento!

Schmilen
Mas para onde sopra o vento, agora?

Güido
Na nossa direção.

Schmilen
De novo? Quanto tempo faz que colocamos rédeas nestes ventos?

Güido
Ventos!

Schmilen
Oh. Não me acostumo com isso...

Güido
Ventos...

Schmilen
Me dá um comichão nas tripas...

Vozes
Seja velha ou seja nova
Uma ordem é a ordem
A ordem exige uma ordem
Seja nova ou seja velha

Schmilen
Quer dizer que... lá vamos nós, novamente?

Güido
Sem perda de tempo.

Vozes
Tempo... Tempo... Tempo... Tempo...

Schmilen
Cadê nosso tempo, Güido?
Outra forte rajada de vento.

Güido
Onde estamos nós dois no Tempo, Schmilen?

Vozes
Exatamente neste lugar!
Exatamente neste momento!

Silêncio.

Güido
Eu não me sinto feliz, Schmilen...

Schmilen
Eu não me sinto seguro, Güido...

Vozes
Por que, para que, para onde e por onde
Me sopram nas ventas estes ventos?

Schmilen
Então vamos nós, novamente...

Güido
Sem perda de tempo...
Com extrema precisão e naturalidade, Schmilen galga o corpo de Güido,
que adequa-se à nova realidade com espantosa habilidade.

Schmilen
Ah, sim!

Güido
Sente-se melhor, Schm... [O outro repreende] ... perdão: Sr. Schmilen?

Schmilen
Muito melhor, meu bom Güido. Obrigado.

Güido
O que seus olhos enxergam, aí de cima, senhor?

Schmilen
Terras novas.

Güido
As campinas virgens!

Schmilen
Esqueça-as. Eu as possuo, neste instante.

Güido
Meus sinceros parabéns, meu senhor.

Vozes
Quem é o que de quem?
De quem o que é o que?
O que é de quem?
Do que é que quem é?
Quem é de quem?
Quem é quem?
Quem é o que?
O que é quem?
O que é o que?

Silêncio. Ouve um ronco de estômago. Vem de Schmilen. Do seu bolso ele tira um saquinho, do qual ele tira e conta dinheiro. Enquanto isso, completamente alheio ao que acontece em cima de si, Guido serve-se de um bom naco de pão. Feliz da vida, prepara-se para comê-lo. Ao deparar-se com o alimento, Schmilen titubeia. Porém, decide guardar seu dinheiro. Então, lança mão de uma lente de aumento...

Güido
[Reza] Pai! Uns têm mas não podem... Outros podem mas não têm... Eu, que tenho e posso, agradeço também. Amém!

Novo ronco de barriga. Schmilen mostra sua lente de aumento a Güido.

Schmilen
Minha lente de aumento.

Güido
Que chique. [Vai comer]

Schmilen
[Rápido] Como é que você pode?

Güido
Comer quando estou com fome?

Schmilen
Como é que pode? É inconcebível que alguém possa pensar em viver sem isso!

Güido
Vivendo, ué. Comendo quando tenho fome, bebendo quando tenho sede, dormindo quando meu corpo cansa e devolvendo o que meu corpo não precisa...

Schmilen
Mas, homem. Há tanta coisa necessária que nem sequer eu inventei ainda... E essa lente de aumento, por exemplo, eu...

Güido
Ela é muito bonita e chique, Sr. Schmilen, mas agora, se me dá sua licença... (Vai comer)

Schmilen
Ah, a simplicidade animal... Você está cego, homem!

Güido
Não, senhor. Talvez um pouco de astigmatismo e um bocado de mau-olhado, quem sabe...
Novo ronco de barriga em Schmilen.

Schmilen
Não se deixe enganar, Güido... A vida é matreira, oculta a sua maior parte. Com uma lente desta, você adquire o poder de ampliar a vida... o mundo! Norte... sul... leste... oeste... em cima... embaixo...

Güido
E dentro também, senhor?

Silêncio.

Vozes
Lá dentro o que é que está embaixo?
Lá dentro o que é que paira em cima?
O que permeia e recheia lá dentro?
O que está dentro do lado de dentro?

Schmilen
[Ronco de barriga] Novos ventos trazem novos tempos, Güido. Um tempo de fortes, de valentes, de vencedores. Sem uma visão ampliada você não conseguirá sobreviver. Você não vai querer ser um perdedor, vai? Eu lhe ofereço toda esta altíssima tecnologia pela mera bagatela de...

Güido
[Voltando ao pão] Sr. Schmilen... o que é que tanto se tem para perder?

Schmilen
Ah, muito! Perde-se principalmente o que se tem, homem...

Güido
Nesse caso, não se preocupe comigo, senhor.

Schmilen
Por isso, acumular nunca é demais. Pondere, Güido.

Güido
[Pão] Licença.

Pausa.

Schmilen
Esteja à vontade, se teus pertences se resumem aos teus intestinos...

Güido
[Desembrulhando o pão] Obrigado, senhor.

Ronco da barriga de Schmilen.

Schmilen
Espere, Güido. É o seu uso – mais do que a ferramenta em si – que nos distingue dos bichos, das plantas e das pedras!

Güido
É, sim, senhor... [Leva o pão na direção da boca]

Vozes
O que, nos diga, o que a fome é
O que, nos diga, o que a fome mata
O que é a fome que mata
O que mata a fome que é

Schmilen
Bon apettit! Lamba os beiços, se você é capaz de cuspir no que há de mais mínimo nessa vida...
Schmilen posiciona a lente sobre a cabeça de Güido, para que um jato de luz solar o atinja objetivamente.

Schmilen
... o que fará com o que há de mais máximo, não é? [Silêncio. Passagem de tempo] Mesmo assim, Güido, o dia hoje está espetacular, não acha?

Güido
Ah, está, sim, senhor... [Güido sente o calor] No entanto...

Schmilen
Sim!? Se algo o incomoda, Güido, que tal negociarmos a saída ideal para ambos os lados, hein, hein?...

Silêncio.

Vozes
Atenção: não se distraia.
O que é que vem à tona,
Atenção: não se traia.
Respire fundo: não caia.

Güido
Sr. Schmilen, lembra da última ventania? não havíamos combinado caminhar ombro a ombro?

Schmilen
[Espalhando o foco de sol sobre Güido] São ventos passados, Güido.

Güido
Não havíamos combinado caminhar ombro a ombro?

Schmilen
Os tempos agora são outros.

Güido
Tempos difíceis!

Schmilen
Tempos dourados. Todos os pingos estão todos nos is!

Güido
Estamos vivos...

Schmilen
O mundo gira e sou eu a sua bússola, Güido!

Güido
E eu sou os remos... ai, que tristeza!

Schmilen
Divirta-se, homem: não se conhece a alegria antes de se sentir a tristeza. Hora do baile!!!!

Güido [Cantando]
Ele é Schmilen, ele é o senhor
Quem é que carrega Güido
Que carrega Schmilen, sem dor
Que dor carrega Güido, senhor
Sem dor da dor que rega Güido
Que leva Schmilen, Güido...

Silêncio.

Schmilen
[Rompendo] SHOW TIME! [Vinheta] Você está na onda do éter e o dia está lindo, caríssimo ouvinte! Hora certa: falta pouquíssimo para daqui a pouco. Este momento é um oferecimento das Bolhas de Sabão Puf — A Ilusão à Toda Prova! Esqueça o que passou e pense somente no que eu lhe digo que está por vir. E vamos agora às principais manchetes do dia... Mataram Sicrano e violentaram Fulana! Mas a metereologia prevê um dia ma-ra-vi-lho-so em todo o país! Roubaram Beltrano e demitiram milhares de Loretanos! Mas a nossa seleção conquistou o octacampeonato mundial de bobobol! [Vinheta] E agora, na voz do impagável Popstrelo, vamos ouvir o maior sucesso de todos os tempos... [“Hit Parade”] E agora, este incrível di-djei se despede com o que tem de melhor a oferecer aos milhões de amados ouvintes... [Arrota]

Entusiasmadíssimo, Güido aplaude histericamente.

Güido
[Excitado] Que estilo! Que jeito de ser! Que moderno! Que...

Schmilen
Então, venha para o mundo de Schmilen! [novo arroto]

Güido o imita, maravilhado.

Güido
Que linguagem! Que estética! Que ideal! Que...

Schmilen
Ái uantiu, Güido! [outro arroto]

Güido
Urrú! Que profundo! Que maravilha! Que hegemônico! Que...

Schmilen
[Passando-lhe um livreto] Tome.

Güido
O “Manual Prático do Jeito de Ser Schmileniano”? Deus lhe pague, senhor!

Schmilen
Dai a Deus o que é de Deus e a Schmilen o que é de Schmilen.

Güido
Bem, senhor... eu...

Schmilen
Conversaremos sobre isso mais tarde, está bem? Por enquanto, Güido, trate de engulir tudo o que está contido neste Manual e eu lhe garanto que, em pouquíssimo tempo, você acreditará que é um Schmilen.

Güido
[Emocionado] Que honra! [Mergulha no manual] Sua moda... Seu menú... Seu pensamento... Sentimento... Ambições...!

Senhor da situação, Schmilen fuma prazerosamente um charuto. Güido “pratica” as lições, os modos que não são seus, tais como o arroto, o jeito de caminhar, de olhar, dançar, comer, cantar... e aplaude-se como faz um chimpanzé de picadeiro. Então ouve-se novo ronco da barriga de Schmilen, que imediatamente intensifica o jato de luz solar sobre Güido.

Güido
Meu deus, o que eu não faria para me livrar desse calor insuportável?

Schmilen
[Saca um abanador]

Güido
Que bênção!

Schmilen
Vai lhe custar três níqueis!

Güido
[Paga e se abana] Ah! [Observa o abanador] Mas este abanador foi feito com a cueca com que lhe paguei os últimos impostos, senhor!

Schmilen
Estamos falando do quê, afinal? Da matéria-prima ou do produto final?
[Intensifica o jato de luz solar]

Güido
Este sol vai fritar meus miolos!

Schmilen
[Remodela seu próprio chapéu e o oferece a Güido]

Güido
Misericórdia!

Schmilen
Apenas quinze níqueis, Guido. Preço promocional.

Güido
[Paga e coloca o chapéu na cabeça] Sempre o senhor. Obrigado.

Schmilen
A Schmilen & Cia. agradece e espera contar com seus níqueis nas próximas promoções especiais!

Güido
Um belo chapéu. Confortável. Feito para a minha cabeça. Até o cheiro dos meus cabelos eu sinto nele e... [Pausa] Mas, senhor! Este chapéu...

Ronco de barriga. Schmilen alveja os olhos de Guido com o jato de luz.

Güido
O Apocalipse!

Schmilen
Infiel! Pederasta! Canastrão! Pecador! Adúltero! Fornicador! Caim dos infernos! Culpado-da-silva! É chegado o teu Juízo Final! Curva tua espinha, sacrílego, herege, filho-do-cão, e reconhece tua pequenez e tuas maldades, vaidoso, orgulhoso, avarento, pestilento...

Güido
[Choroso] Perdão! Perdão!

Schmilen
Tua alma degenerada, infiel guloso e irado, só tem agora uma saída e ela se encontra bem dentro desse saquinho de coleta de dízimo... Arrepende-te, ó podre!

Güido [Ajoelha-se, desesperado]
Eu me arrependo, meu Pai,
Neste meu juízo final,
Perdoa todos os meus pecados
Ainda mais os que eu não pequei
E os desejos que somente acalentei
E os ventres que eu não semeei,
E as fúrias que eu ventilei,
E as gulas que não saciei,
E as vigílias em que eu cochilei,
E os sonhos que enferrujei,
E as mentiras que eu sustentei,
E as entregas que eu negociei,
E os tijolos que eu não assentei,
E os furores que eu dosei,
E os tumores que eu endeusei,
E os temores que eu espalhei,
E os tremores que eu causei,
E os rumores que propaguei,
E os humores que dissequei,
E os sabores que não gozei,
E os hinos que não cantei
E o medo da morte a quem,
Eu sempre me entreguei.
Amém.

Schmilen
Eu te absolvo, infiel... [Oferece-lhe seus óculos de sol] Por cinqüenta níqueis!

Güido
Cinqüenta?

Schmilen
Preço de custo.

Güido
Mas os meus olhos... Eu não tenho mais dinheiro algum.

Schmilen
É o fim-da-picada, Güido!

Güido
Mas eu tenho ombros fortes para carregá-lo e pernas valentes para levá-lo, senhor...

Schmilen
Está bem, está bem, está bem. Maldito coração de manteiga!

Güido
Misericórdia!

Schmilen
Em troca destes óculos protetores, Guido, você vai me pagar cinqüenta suaves prestações de cinqüenta níqueis. Sem entrada. Assine aqui.

Güido
[Emocionado] Como é que posso lhe agradecer, senhor?

Schmilen
[Arranca-lhe o pão] Negociando a gente se entende!
Enquanto, com etiqueta, Schmilen come o pão, Güido veste o óculos e volta ao manual. Silêncio.

Vozes
O topo é, na verdade, outra base.
Quem é que sabe que negócio é esse negócio?
Que preço vira em negócio qualquer apreço?
Que apreço verdadeiro tem na verdade um preço?
Quem sabe a que preço se faz ou desfaz um negócio?
O topo é, na verdade, outra base...

Güido
[Parando bruscamente] Xi.

Schmilen é realiza movimentos mirabolantes para conseguir se manter empoleirado em Güido.

Schmilen
Que aconteceu agora?

Güido
Perdão, senhor... mas não posso continuar.

Schmilen
Não se pára impunemente a marcha histórica...

Güido
Estou em dúvida.

Surge uma leve rajada de vento...

Schmilen
[À platéia] Xi !

Güido
Sr. Schmilen...

Schmilen
[Rápido] Não diga nada, meu bom Guido. Dia longo, sol forte. Hora do merecido recreio.

Güido
Senhor...

Schmilen
Abanque-se. [Güido relaxa] Assim está melhor, não?

Güido
Senhor...

Schmilen
Em poucos minutos a noite nos trará todas as sombras que colheu durante o dia... Agora, meu bom Güido, abra um bom vinho. Quero celebrar a caminhada.

Güido
Sr. Schmilen... não faz tanto tempo assim...

Schmilen
Safra nova, então?

Güido
... que enfrentamos a última rota dos ventos. [Abre o vinho e serve a ambos]

Schmilen
[Dissimulando] Obrigado, Güido... Agora, um brinde: aos ventos passados que não movem moinhos! Tim-tim...

Güido
Sim, senhor... tim-tim.

Schmilen
Que belo crespúsculo... Tenho que privatizar essa maravilha!

Güido
Eu me sinto mal... cansado... ando pensando demais.

Schmilen
Isso não é bom, meu caro. Não é bom. É tóxico! Evite...

Güido
É como se eu carregasse o mundo em minhas costas, como se eu...

Schmilen
[Calculada e subitamente] Meu deus do céu. Olhe só aquilo ali, Guido!

Quando Güido mira o local apontado, Schmilen lança uma casca de banana a um passo de Güido.

Güido
Era apenas um albatroz em pleno vôo, senhor...

Schmilen
Um albatroz! Ah, a natureza... Bem, que tal retomarmos a caminhada, meu bom Güido? A História não pode esperar...

Güido
[Levantando-se] Sim, senhor, se não quisermos que a noite chegue e...
[escorrega na casca de banana]

Caos. O escorregão coloca ambos em situação de agonia. Mesmo em queda,
as posições se mantêm. Em nenhum momento os pés de Schmilen tocam o solo.

Güido
Senhor!

Schmilen
Calma, Güido. Mantenha a calma. Eu não fui atingido. Estou bem.

Güido
Que diabo aconteceu, senhor?

Schmilen
[Solene] Devo fazer um pronunciamento ao mundo.
[À platéia] Povo do Bem. Nossa terra sofreu um atentado terrorista. O momento nos chama à uma sagrada cruzada contra as forças das trevas.

Güido
Misericórdia!

Schmilen
Diplomatica e pacientemente eu pedi e aguardei que Macaco Munky destruísse suas plantações de bananas podres. Mas não há mais dúvida alguma: o malvado Munky odeia o povo do bom Schmilen.

Güido
Maldito!

Schmilen
Por isso, antes que os macacos de Munky usem estas bananas mortais contra gente inocente dentro ou fora das Campinas Virgens, eu farei um ataque preventivo para garantir a minha, quer dizer, a nossa segurança nacional e aniquilar com sangue, dor e desgraça esta ameaça à paz do mundo. O maior poder da liberdade é superar o ódio e a violência.

Güido
Vamos embananar o maldito sanguinário!

Schmilen
Sim, nós vamos destruir Munky e depois vamos reconstruir aquela floresta à nossa imagem semelhança.

Güido
Deus salve o Povo de Schmilen!

Schmilen
Clamo os povos livres a se unirem, sob o meu comando, e que Deus continue a abençoar as Campinas Virgens.

Güido entra em estado de histérico ufanismo pela “causa”...

Güido
Abaixo o Inferno de Munky! Viva o Paraíso de Schmilen!

Schmilen
Viva a Paz!

Güido
Viva!

Schmilen
Então vamos à Guerra! Companhia marche!

Güido
Schmilen! Schmilen! Schmilen!

Marcha militar. Güido está ensandecido pelo ideal de Schmilen,
que comanda a marcha com uma luneta de longo alcance, seus mapas e cálculos...

Schmilen [Cantando]
Um, dois, três, quatro!

Güido
Quatro, três, dois, um!

Schmilen
Quem paga esse pato

Güido
Tanto faz, é qualquer um

Schmilen
Um, dois, três, quatro!

Güido
Quatro, três, dois, um!

Schmilen
Na sola do meu sapato

Güido
Está o olhar de qualquer um

Schmilen
Um, dois, três, quatro!

Güido
Quatro, três, dois, um!

Schmilen
Se é amigo ou inimigo

Güido
O que me importa é meu umbigo

Schmilen
Um, dois, três, quatro!

Güido
Quatro, três, dois, um!

Schmilen
Companhia, alto! [Pausa. Checa toda a paisagem com sua luneta] A Floresta de Munky!
[Surgem sons de gritos e algazarra de macacos] Güido, preparar...

Güido
[Prepara uma potente metralhadora de última geração] Sim, senhor!

Schmilen
Que Deus, em sua infinita misericórdia, tenha pena da alma podre desses infelizes e que abençoe nossa justa causa! Vai, Güido, extermina esses piolhentos primitivos... FOGO!!!!!

Enquanto, ensandecido de “ódio pelo inimigo”, Güido abre fogo para todos os lados (e a gritaria de macacos acentua-se), Schmilen se protege atrás de um guarda-chuva e de uma bíblia e analisa seus mapas, consultando ora e vez sua luneta de longo alcance, tomando refrigerante, fumando charuto e cantarolando cantigas românticas. A gritaria de macacos diminui até o SILÊNCIO TOTAL.

Güido
Missão cumprida, senhor!

Schmilen
O que? Ah, sim. Muito bom. Deus está feliz agora.

Güido
E o mundo está muito melhor de se viver, não está, senhor?

Schmilen
Soldado Güido. [Pendura uma medalha de Honra-ao-Mérito no pescoço de Güido] As Campinas Virgens são gratas por sua bravura, sua coragem, seu espírito livre, fiel e pacífico.

Güido
Nada teria saído tão bem sem o senhor no leme, Sr. Schmilen.

Schmilen
Não diga coisas óbvias.

Güido
E o que faremos, então, com esta Floresta, senhor?

Schmilen
O que é que me resta, meu bom homem, senão fazer o sacrifício de incorporá-la às Campinas Virgens, em nome da liberdade e da paz?

Güido
[Aplaudindo freneticamente] Deus salve Schmilen!

Schmilen
Agora me deixe descansar.

Schmilen isola-se, comendo pão. Silêncio. Güido, enquanto admira, embevecido, a medalha conquistada na Guerra, sente o corpo dolorido e machucado e a barriga começa a roncar. À medida que a fome aperta, o valor da medalha diminui. Impaciente, ele tenta em vão “comer” a medalha. Não consegue dialogar com Schmilen. Então, ao checar a Floresta, algo o perturba....

Güido
Senhor...

Schmilen
[Indiferente] No momento não posso atendê-lo. Deixe o seu recado após o sinal que entrarei em contato o mais brevemente possível. Obrigado. Bip.

Güido
Sr. Schmilen!...

Schmilen
Ora, Güido, deve estar acontecendo algum torneio internacional de bobobol ou alguma novela imperdível... Por que não vai se distrair um pouco? Vá fazer compras!

Güido
Onde estão, senhor?!

Schmilen
Existe sempre um dos meus centros de consumo pertinho de você... Aqui mesmo, em breve, eu inaugurarei mais um e...

Güido
Onde estão as bananas mortais que viemos destruir?

Silêncio. Expectativa. Schmilen sente o golpe. Apaga o charuto, guarda os papéis e a bebida. Saca sua luneta de longo alcance e esquadrinha atentamente todo perímetro em que sem encontram.

Schmilen
[Guardando a luneta] Respire fundo, Güido. Agora! [O outro obedece] Percebe como você pode respirar muito melhor sem a presença demoníaca de Munky, o terrível gorila verde? É isso é o que realmente importa.

Güido
Mas as bananas...

Schmilen
O que passou, passou. Bola para frente, que a História tem pressa. [Silêncio] O que sugere para comermos, Güido?

Güido
[Cínico] Gorilê a parmeggiana, senhor?

Schmilen
Boa pedida. Bem passado, por favor. [O outro prepara algo de comer. Silêncio]
A noite está belíssima...

Güido
Olhe, senhor, que bela estrela cadente!

Schmilen
MERDA! Lá se foi um dos meus satélites...

Güido
Bem feito...

Schmilen
O que foi que disse, homem?

Güido
Perdão. Pensei alto.

Schmilen
Isso é bom. Eu preciso saber o que você pensa. Mas isso é mau. Porque eu não compreendi. Explique-se.

Güido
É que, para colocar aquela máquina no céu, o senhor usou coisas que são da Natureza, que é patrimônio de todo mundo, e nem pediu licença...

Schmilen
Louco! A batalha afetou-lhe os miolos?

Güido
Então eu também deveria estar lá dentro do seu satélite, conhecendo o lado de fora do mundo...

Schmilen
Abusado! De que cofre saiu os milhões de níqueis que colocaram aquilo ali no céu?

Güido
E quem foi que transpirou na construção desse cofre e se cozinhou na fabricação do seu foguete, senhor?

Ressurge a rajada de ventos...

Vozes
Uma coisa é uma coisa
Outra coisa é outra coisa!
A subida é embriagante
A altura é vertiginosa
Manter-se lá é que são elas!
Uma coisa é uma coisa
Outra coisa é outra coisa!
Mas e a coisa, o que que é?
Cada coisa, o que é que é?
A subida é cansativa
A altura custa o medo
Manter-se nela é que são elas!
Uma coisa é uma coisa
Outra coisa é outra coisa!
Mas o que é uma coisa?
E o que é outra coisa?
A subida é viciante
E a altura, enebriante
Manter-se nela é que são elas!
Uma coisa é uma coisa
Outra coisa é outra coisa...

Schmilen
Não estrague tudo, Güido.
Rajada mais forte de ventos...

Güido
A ventania... agora eu me lembro!

Schmilen
[Rápido] Mas o que é aquilo ali, Güido!?

Güido
[Atento] Fizemos um acordo, sim.

Schmilen
[Rompendo] SHOW TIME! [Vinheta] Você está na onda do éter, o dia está lindo e falta pouquíssimo para daqui a pouco. Este momento é um oferecimento das...

Güido
Foi na última Grande Ventania...

Schmilen
[Olhando pela luneta] Estamos perdendo tempo. O corpo de Munky não foi encontrado. O maldito deve estar se levantando contra a paz no mundo...

Güido
Meus olhos ardem... meus ombros dóem... minha cabeça está zunindo...

Schmilen
[Saca um tablete de comprimidos] Analgésicos Nananeném! Pela bagatela de cinco níqueis, você...

Rajadas mais intensas...

Güido
[Referindo-se ao chapéu, ao abanador, aos óculos de sol]
Eu já lhe paguei pelo que sempre foi meu!

Vozes
Será que existe vida após o parto?
O vento, o vento, o vento, o vento...
Será que existe luz fora da concha?
O vento, o vento, o vento, o vento...
Será que existe chão na tormenta?
O vento, o vento, o vento, o vento...
Inventa, diverte, reverte, inverte
O vento, o vento, o vento, o vento...
Será que existe vida após a tormenta?
O vento, o vento, o vento, o vento...
Será que existe luz fora do parto?
Será que existe chão dentro da concha?
O vento, o vento, o vento, o vento...
Inventa, diverte, reverte, inverte
O vento, o vento, o vento, o vento...
Será que existe parto na tormenta?
Será que existe chão fora da luz?
Será que existe vida na concha?
O vento, o vento, o vento, o vento...
Inventa, diverte, reverte, inverte
O vento, o vento, o vento, o vento...

Güido
Eu proclamo a minha própria reintegração de posse!

Schmilen
Vamos negociar... Anistia tem que ser válida para os dois lados, de acordo?

Ventania...

biaggiolic@yahoo.com.br

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