14/11/2008

NARRATIVAS DE PASSAGEM

Eu tive a honra de pertencer, por quase dois anos, ao grupo "Narrativas de Passagem", um projeto de Luis Alberto de Abreu — a meu ver um dos maiores dramaturgos vivos do Brasil. Estas são de minha autoria, dentro de tantas daquelas que ali surgiram...

BIRÓBAS
Era uma vez, bem no coração do Brasil, um vilarejo tão perdido, mas tão perdido, que nem pontinho no mapa lhe foi concedido.
Quem me contou de Biróbas (era esse o nome de lá) foi o Seu Pirineu, homem do mato, um preto velho de fortaleza invejável que eu conheci durante uma pinguinha na soleira dum botequim de estrada.
Aliás, minto. O Seu Pirineu falou:
— Aquele fim de mundo nem nome tinha, seu moço. Só apelido...
“Biróbas” foi como ele apelidou o povoado, onde viveu por um tempinho. Como não tinha registro oficial, cada um chamava o lugar do jeito que agradava a própria memória.
— Biróbas! Que nome besta, seu Pirineu! — comentei eu, por brincadeira...
Virgem Mãe! O negro velho tascou o rolinho de fumo picado no terreiro, com os olhos pegando fogo. Cheguei até a sentir as pernas tremerem. Parecia que eu tinha falado uma asneira. Não, pior: uma blasfêmia! Sim, sim, um herege, flagrado soltando pum ao pé do altar. Olhei a estrada, querendo encerrar o assunto, mas não foi que o olhar do velho pesou bem na boca do meu estômago?
Pedi desculpa, ué. Que mais eu podia fazer? Deu certo. O clima ficou leve e, a duras penas, eu também fui me acalmando, a ponto de querer falar de futebol ou, pra falar a verdade, até me despedir.
Mas... CAPAPIMBA! Outro susto. O Seu Pirineu era um “outro” Seu Pirineu. Com o coração querendo pular boca afora, eu já sentia preparava outro pedido de desculpa quando, sem tirar os olhos de cima de mim, o velho apontou na direção do céu, dizendo:
— Biróbas, moço!
O que encontrei na imensidão azul foi uma borboletinha amarela brincando de voar... Foi tanto alívio que me veio um acesso de riso... Quando fui olhar pro Seu Pirineu... onde é que o velho tinha se metido, Deus do céu? Antes que eu pudesse juntar alho com bugalho, a mão dele agarrou meu queixo. Só me restava mirar a borboleta amarela...
— Biróbas — sussurrou ele no meu ouvido esquerdo, com hálito de fumo picado.
Mas, sendo franco, a mão no meu queixo era tão firme e calorosa que me passava uma confiança paralisante... Não! Melhor: anestesiante... Não! Melhor ainda: inebriante! Isso. Me abandonei na borboleta, por um tempão (pois me lembro que suei e sequei o suor no tempo)...
De repente, fui dominado pelas cores do mundo. O azul do céu... o amarelo do sol e da borboleta... o verde da mata... o vermelho da terra... Até o bater das asinhas da borboleta virou música pra mim... O Seu Pirineu era o maestro daquela orquestra toda. O tempo parou. E o azul, o amarelo, o verde e o vermelho viraram moldura de luz da borboletinha amarela.
Dentro do meu peito, eu ouvi a voz do Seu Pirineu:
— Biróbas!
Em pleno vôo, no máximo da sua beleza, a Borboletinha parou! E ficou! O próprio sol não brilhava mais que ela! Então, num piscar de olhos, ela mudou de forma e eu vi um casulo enorme, pintado de vermelho, verde, azul e amarelo muito vivos. Um enorme casulo...
— Biróbas!
De corpo inteiro, lá fui eu, arremessado pra dentro do casulo, pra junto da Lagarta... Que momento solene! Quando ela percebeu o beco-sem-saída, começou a se retorcer todinha, e a babar, implodindo por todos os lados, num calor de enlouquecer... Sons que eu nunca tinha ouvido na vida iam se afinando até virarem uma música única, linda... Um apelo que vinha da gosma em que tinha se transformado a Lagarta e que ecoava clara no meu coração:
— Morrer pra existir!
Finalmente a Lagarta explodiu e se derreteu inteirinha dentro do Casulo...!
— Morrer pra viver! Pra viver!
Eu nadava na Lagarta! E sentia muita paz dentro dela...
— Biróbas!
De susto em susto, o nego-véio enchia o papo! Assim, de repente, daquele aguaceiro todo surgiram duas asas imensas, amarelas. E BUM! O casulo foi pro beleléu e eu despenquei no chão, zonzo de vertigem. Voltei, então, a sentir a pressão gostosa no meu queixo, o cheiro forte de fumo picado e o bafo quente no pé da minha orelha:
— O moço me entendeu, não foi?!
No fim da zonzeira, eu ainda consegui ver a borboletinha voando alegre, até sumir detrás do arbusto...
Eu até quis responder a pergunta, mas o Seu Pirineu já tinha se enfiado dentro do mictório do butequim, arrastando as suas chinelas, sorrindo e cuspindo fumo picado...
Pois é...
CIRANDA DE TRÊS

Pra Michelle Flores...

Era uma vez um grande rio, com duas margens, uma do lado de cá e outra do lado de lá. Do lado de cá do grande rio havia uma menina e um anjo e, do lado de lá, uma bela moça cercada de amigos estranhos. E não vamos nos esquecer do barqueiro que faz a travessia de cá para lá e de lá para cá, por sobre as águas tranqüilas do rio, no fundo do qual reina um príncipe malvado. Agora que estamos todos apresentados, vamos conhecer a menina e seu velho amigo...

— Vai ser Gabriela, tio! — gritou a menina, sorrindo de lado a lado. — Em sua homenagem! Gostou?

— Mas ontem o nome não era Terezinha? E anteontem, Liliana? — brincou o guardião. — Dê mais tempo ao Tempo, Letícia, e vem pra cá, aproveitar a sombrinha deliciosa dessa árvore.

— Já vou, tio, já vou... — mentiu ela, mirando a tranqüilidade do rio. — Mas, tio. Quando é que o Tempo vai se lembrar de mim, hein? Eu quero tanto ir pro lado de lá... — perguntou ela, desenhando caracóis com os dedinhos na água que vinha se empoçar, cheia de peixinhos, no meio dos seus joelhos mergulhados na água.

— Só quem mora do lado de lá não quer atravessar o rio, isso sim... — brincou o guardião.
Na outra margem do rio estava uma moça muito bela. Seu rosto era muito vivo e alegre e, com olhos que faiscavam sonhos, a moça olhava a imensidão azul do céu onde suas mãos iam moldando o homem do seu desejo nas nuvens, como se elas fossem algodão-doce.

— Olha, Tio! O Homem de Algodão Doce não é lindo? Eu quero ir lá, eu quero ir brincar com eles, tio... Ele não se parece comigo? E eu com ela? E ela com ele?

Preocupado, o guardião trouxe Letícia para a sombra da árvore... — O mundo todo é um lindo sonho de Deus, sabia? É por isso que todo mundo se parece com todo mundo... — disse ele, entre uma jabuticaba e outra. Então os dois ficaram lá (num silêncio que só entre amigos é gostoso), apreciando a conversa solitária da Bela Moça com seu amado de nuvens...

Mas o coração de Letícia também estava lá no alto do rio, debaixo duma imensa árvore de florzinhas amarelas debruçada sobre as águas, por onde ela esperava há muito tempo surgir a barquinha branca do velho Caronte... — Tio Gabriel, eu acho que o Tempo esqueceu de mim, aqui!

De repente, um gemido muito triste atraiu a atenção dos dois para a outra margem do rio. Num bailado desesperado, a Bela Moça tentava agarrar o Homem de Algodão Doce que, levado pela brisa, ia embora no azul do céu.

Numa grande presença de espírito, Gabriel conseguiu evitar que a aflição de Letícia fizesse ela pular no rio e cair diretamente nas garras do terrível Medok, o Príncipe dos Que Não Vivem, que reina no fundo daquele rio. Com a menina no colo, Gabriel chegou junto à margem e escancarou os ouvidos, espantado por estar ouvindo o largo vozeirão de Caronte, cantando:

Bem que eu vou
Bem que eu venho
Do que eu sou
Nada tenho...

A aparição da barquinha por aquelas bandas simplesmente não tinha o menor cabimento... Muito menos o que estava acontecendo lá na outra margem:

— Olha, Tio! O que é aquilo...?

Enquanto a barquinha surgia debaixo da árvore amarela, ao lado da Bela Moça aparecia uma outra figura humana, construída com areia da margem do rio. Era outro homem, com uma cabeça sem rosto: um Homem de Areia, que tirou a Bela Moça para dançar uma ciranda... Então o Anjo entendeu que, debaixo daquele sol, tudo havia saído dos eixos.

Do lado de cá do rio, aos gritos de alegria, Letícia se juntou à ciranda do casal...

— Até que enfim, Tio Gabriel! — saltitava ela — O Tempo se lembrou de mim! É o barquinho do Tio Caronte, sim... Chegou a minha vez!

E sua felicidade era tanta que a menina nem percebia a tristeza da Bela Moça, olhando o azul do céu enquanto dançava com o Homem de Areia.

Era imenso o mal-estar que Gabriel sentia.

— Escuta, Letícia, tive uma idéia. O dia está lindo. Que tal darmos uma voadinha lá para os lados da Estrela Sírios. Está acontecendo aquele festival maravilhoso de corais de querubins...

Mas a essa altura, ela já estava empoleirada dentro da barquinha branca de Caronte...

— Você por aqui, Caronte? — saudou o Anjo, mais em tom de despedida do que de boas vindas.

— Salve, Gabriel... Eu posso saber que confusão é essa? — disse o barqueiro, ao zarpar para a outra margem, com Letícia como passageira, vidrada na imagem da Bela Moça tentando construir um castelo com o que restou do Homem de Areia...

Então a água do rio começou a ferver e grandes bolhas vieram lá do fundo do rio. Era Medok que estava se manifestando... No mesmo instante, Gabriel abriu suas imensas asas azuis e voou para acompanhar a travessia.

Com os olhos que antes eram brilhantes faíscas agora voltados para o lado de dentro da cabeça, a Bela Moça caminhou em direção das águas atraída pelo Príncipe dos Que Não Vivem.

— Mau presságio! — falaram ao mesmo tempo o guardião e o barqueiro, que começou a remar a barca de volta e para longe daquelas bolhas terríveis.

Expressões completamente desbaratadas imprimiam-se no semblante da Bela Moça, que, com meio corpo já mergulhado na água do rio, parecia estar se vendo pela primeira vez na vida. E de repente, num lapso de segundo, seus olhos se voltaram para fora e o que se viu neles foi a mistura de surpresa e terror...

— Ela me viu, Tio! Ela me viu, sim, mas ela... — sussurrou Letícia.

O rio, borbulhando escandalosamente, logo, logo engoliria a Bela Moça. Então, para a surpresa do guardião, a menina começou a cantar:

Bem que eu vou
Bem que eu venho
Do que eu sou
Nada tenho...

— Rema, Tio Caronte, rema com força. Me leva de volta pra margem, Tio, me leva... Moça, volta!

Com uma estranha sensação de alívio e sentindo-se quase feliz, a Bela Moça instintivamente começou a caminhar para trás, de volta à margem. E as águas do rio começaram a se acalmar novamente...

— Segue em frente, Moça. Vai aí pelo caminho da margem do rio, que eu vou fazer a mesma coisa, do lado de cá. Quem sabe a gente não lá na frente, não é, Tio Gabriel?

Com um beijo carinhoso em Letícia e um forte abraço em Gabriel, aliviado o barqueiro tomou rumo rio acima e desapareceu atrás da frondosa árvore de flores amarelas.


Com o Sol e sua própria imagem refletida no espelho do rio, a Bela Moça botou o pé na estrada...

Agosto/2005

biaggiolic@yahoo.com.br

O VALE DAS QUATRO LUAS

O galo cantou.

Com um pulo só, de susto, Simão caiu sentado sobre sua cama. Girou a cabeça para todos os lados e, aliviado, lembrou-se de onde é que ele estava. Então enxugou o suór, que pingava do rosto e da careca lisa. Respirava alto, preocupado em não acordar os dois meninos chorões, que ainda não sabiam de verdade porque é que suas barrigas doíam daquela maneira. Quantas e quantas vezes ele não quis contar esse segredo aos dois? Mas não era louco. Ele é que não ia se arriscar a ser castigado por Ela, quando estivesse do lado de lá do travesseiro.

Respirou fundo. Pelo silêncio que fazia, ou já era tarde ou ainda era muito cedo. Enquanto esticava o braço pra pegar água na moringa, olhou para o balcão, no saguão, e viu a moça de branco, sorrindo pra ele e piscando um olho. Era divertida, a moça de branco. Gostava de brincar de piscar o olho com ela. Então bebeu um copão inteiro de água fresquinha. Ah, gostosura!

Ficou olhando a brancura do seu quarto, sentindo saudade do seu pai e de sua mãe, que não estavam ali, com ele. Foi assim que aquela coceirinha foi voltando pra dentro dos olhos e viu que não teria outra saída a não ser mergulhar de novo na fofura branca e cheirosa do seu travesseiro. Foi assim que Simão fez.

E lá estava ele, de novo, no Vale das Quatro Luas!

Chegou lá e percebeu que estava tudo muito, muito estranho. Só havia silêncio e escuridão, tão diferente de quando, um dia, que ele nem lembrava mais quanto tempo já fazia, tudo ali era muito divertido, de pernas para o ar, diferente de tudo que ele conhecia.

Tinha vez que ele saia andando, andando e andando e quando ia ver, nem tinha saído do mesmo lugar. E tinha vez que ele flutuava feito uma pena levada pelo vento, com um passo ele descia e subia toda a escadaria de luz dourada que levava ele até a porta azul brilhante do Castelo da Lua Cheia, que ficava dentro da estrelinha mais azul do céu, do lado direito do Sol.

Era naquele castelo que vivia a Fada Azul, com quem ele adorava ficar brincando, ouvindo histórias e cantando aquela cantiga que ele trazia dentro do seu coração desde sempre. A fada adorava plantar florzinhas silvestres coloridas em sua careca e em suas sobrancelhas. Ele olhava no espelho d’água da Fada Azul e se achava muito lindo.

Um dia, quando ela saiu para passear numa das nuvens brancas de algodão, ele teve uma idéia muito torta. Mesmo sabendo que isso não era permitido, ele foi até o baú de prata e de dentro dele tirou o espelho d’água para se ver. E o que viu foi uma Árvore Seca cercada de areia escaldante por todos os lados.

Quando Simão olhou para a Árvore Seca, os galhos secos dela, retorcidos e sem vida alguma, atravessaram o espelho e levaram ele embora para o Deserto da Lua Minguante. Em um dos galhos da árvore seca estava pousado um abutre muito feio, sem penas e com um bico retorcido, parecido com um imenso parafuso, que nem aqueles que seu pai usava no seu trabalho de carpinteiro.

O abutre sem penas não tirava os olhos de cima dele e parecia sorrir, um sorriso diabólico. De repente, de dentro do tronco da árvore seca, saiu uma velha muito feia, sem dentes, corcunda e toda torta, vestida com panos pretos imundos, com os poucos cabelos amarelos cheios de flores murchas e secas. Era a Bruxa do Deserto.

De lá para cá, Simão nunca mais teve um minuto de sossego, pois a Bruxa, ao ver que tinha conseguido trazê-lo do Castelo da Lua Cheia, estalou os dedos e o abutre levantou vôo. Voou até perto do sol, ficou pequeninho feito um pernilongo e, então, de lá do céu ele despencou, numa queda só, e, aproveitando o espanto do menino, que a tudo assistia de boca aberta, o abutre mergulhou pela sua boca adentro, indo se aninhar dentro da barriga de Simão, onde ele passou a viver, dando bicadas e mais bicadas e causando dores terríveis nele.

Simão já nem se lembra mais quanto tempo faz que isso aconteceu, quando ele perdeu o rumo do Castelo da Lua Cheia. Mas a verdade é que nunca mais ele parou de fugir. Corria, corria e corria e não tinha jeito de ele encontrar a escadaria de luz. E a saudade que ele sentia da Fada Azul era do tamanho do Sol que agora, mesmo naquele escuro silencioso, cozinhava Simão por dentro.

Ele sabia que não havia muito o que fazer, que estava de novo no Deserto da Lua Minguante. Pensou em sair correndo, levantou-se e partiu, sem enxergar nada, tropeçando em ossos e engolindo pó e cheiro de coisa podre. Percebendo o que estava acontecendo, o Abutre fez a festa... bicou a barriga dele até fazer Simão cair no chão, curvado, chorando de dor, pedindo socorro bem baixinho, pois não tinha fôlego para mais nada.

Então, ele ouviu as gargalhadas da Bruxa ecoarem por todo o deserto. Ela vinha atrás dele, e ele não tinha mais forças para ir adiante na sua fuga. Dona da situação, ela se aproximou do menino e, apontando para ele um galho seco de sua árvore, ela falou: “carecas não são para flores, seu moleque!”. E com força ela cutucou a barriga de Simão, enfurecendo o abutre lá dentro dela.

Chorando e chamando pela Fada Azul, ele conseguiu se levantar e voltar a fugir. Correu, correu, correu e, quanto mais ele corria, mais ele sentia o fedor da Bruxa ao seu redor e mais o abutre fazia a festa dentro da barriga dele. De repente o deserto sumiu e ele percebeu que caía no precipício, pesado feito uma pedra. Nesse momento, ele sentiu uma saudade imensa de seu pai e de sua mãe, pois viu que nunca mais ele tornaria a vê-los...

Então sua calça foi fortemente puxada e ele parou de cair. Seu coração quase pulou para fora da boca. Quando conseguiu recuperar o fôlego, viu que havia sido salvo pelo galho de uma frondosa árvore, branca, muito branca, da brancura da própria Lua. Era de uma beleza emocionante, aquela árvore, e os frutos dependurados em seus galhos verdes eram moringas de água pura!

As gargalhadas da Bruxa Simão já quase nem ouvia. Estava encantado com a Árvore de Água de Lua. Ouviu então um galo cantar. Sentiu perfume de flores e acreditou que tinha conseguido voltar ao Castelo da Lua Cheia. Esticou o braço para apanhar uma moringa e beber água de lua, quando ouviu uma voz muito doce lhe falar: “Nananinanão, Simão! O Castelo da Lua Cheia não está mais neste vale. Aqui você está no Abismo da Lua Crescente...”

Maravilhado, o menino procurou, procurou e, bem no meio da copa de folhas de um verde muito brilhante, ele encontrou o rosto da Árvore, que, sorrindo para ele, piscou um olho e falou: “Por que você não colhe aquela moringa que está bem ali, hein?”. Simão quis obedecer, mas a tal moringa estava tão longe dele, que ele ia ter que ia lhe dar um trabalhão para chegar até ela. E lá foi ele, se segurando com todo o cuidado, engatinhando até quase a ponta do galho verde, tentando não olhar lá para baixo, no fundo do abismo, pra não sentir tontura e despencar lá para baixo. Então ele foi, foi, foi e conseguiu chegar até a ponta do galho, colher a moringa e beber, ali mesmo, feliz da vida, a água pura que havia nela. Ah, gostosura!

Dentro de sua barriga, o Abutre estava morrendo afogado e, por isso, Simão sentiu tanta alegria que se pôs de pé sobre o galho da árvore. Do fundo da moringa ele tirou um pedaço de espelho e, quando ia contemplá-lo, ele escutou o grito de raiva da Bruxa. O medo que sentiu foi tão grande, que a Árvore de Lua desapareceu, levando com ela as moringas e o perfume das flores.

E Simão despencou até o fundo do abismo, indo cair em cima de um monte de moitas secas, ao lado de duas pedras muito pesadas, que não se podia mudá-las de lugar. E as pedras olhavam para ele e morriam de rir. Paravam de rir e começavam a chorar, para depois rirem de novo e assim por diante.

Tonto pela queda, Simão olhou bem para aquelas pedras e sentiu como se o coração fosse de novo sair pela boca afora. Aquelas pedras eram os meninos que dormiam com ele na Casa Nova! Mas o que foi que aconteceu com eles? “Foi a Bruxa que fez a gente assim... Seja benvindo ao time, Simão!”, falaram as pedras para ele. Apavorado, ele se levantou, apontou o dedo para elas e gritou: “Eu não quero ser pedra, não!”.

Dito isso, ele se virou para correr dali e deu de cara com o bafo gelado da Bruxa diante do seu rosto. A mão dela agarrada ao seu pescoço. As pedras se calaram. Então a Bruxa rosnou, com aquele bafo gelado, que causava um sono imenso em Simão: “você matou o meu Abutre, fedelho!”. Ele se chacoalhou inteiro, tentando escapar daquela garra e fugir. Mas não conseguiu, porque o sono que sentia era cada vez mais forte. Seu corpo, da cintura para baixo, já havia sido transformado em pedra. Sentiu o maior medo de sua vida.

A Bruxa, com aquele riso sem dentes e torto, rosnou, cheia de ódio: “É isso mesmo, moleque. Você vai virar mais um degrau na minha escadaria”. Era o fim.

Sem pés, sem pernas e com um sono paralisante, ele reuniu as poucas forças que ainda tinha e apanhou o espelho que a Árvore de Lua lhe havia dado. Então, Simão olhou para o espelho e o que viu lhe deu tamanha alegria que uma onda de eletricidade o despertou e dissolveu a pedra em que seu corpo estava se transformando. Era a Fada Azul que estava dentro do espelho, com muitas flores nos cabelos e nas sobrancelhas, sorrindo e cantando aquela cantiga que ele tanto amava.

Sem mais nem menos, Simão mostrou o espelho para a Bruxa, que, apavorada, jogou-se no chão, curvada sobre seu próprio colo. A Bruxa estava chorando. Simão se levantou e foi até ela, curvou-se, pegou suas mãos e as beijou com carinho, pois foi por causa dela que ele reencontrou sua Fada Azul, tão querida.

A Bruxa gemeu e uma flor viva desabrochou no meio de seus cabelos amarelados. Então ela sorriu um sorriso bonito, que durou só o tempo de duas piscadas de olho, depois dos quais ela gritou com o dedo curvado apontado para Simão: “Um dia a gente se encontra de novo, moleque!” e explodiu, virando poeira e deixando no seu lugar um longo silêncio.

Então, o galo cantou novamente.

Simão se levantou e foi ver as pedras. Eram somente pedras, os meninos já nem estavam mais nelas. Então ele apanhou o espelho, que saltou de suas mãos para o céu, espalhando luz azul para todos os cantos e colorindo com flores brilhantes todo o Vale das Quatro Luas. Quando pousou diante de Simão, o espelho ficou de pé, agora grande e aberto como uma borboleta de cristal.

Ele olhou para o espelho e viu que não havia outro caminho a seguir. Sem olhar para trás, ele sorriu, disse adeus a seu travesseiro e começou a subir a imensa escadaria dourada do Jardim da Lua Nova...

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A CURVA DO RIO

Quando eu era menino eu não sonhava muita coisa, não... A minha vida corria bem solta, bem dona de si, naqueles dias e noites cheios de suor brincalhão pelo corpo inteiro. Quer saber da verdade? O trabalho era mais da Vida do que meu, isso sim.

Sonhos nem sonhos eram! De repente, quando as listras de sol da persiana descascada me lambiam a cara, meus olhos se abriam e a minha vida simplesmente continuava... com o cheiro quentinho do café cantarolado pelo surrado coador de pano lá do balcão da cozinha.

A vida não tinha muito porque nem por-causa... Eu sentia fome e comia. Nem um grãozinho a mais nem a menos, sabe... E era a mesma coisa com a laranjada da Tia Zopha, quando a sede aparecia, sempre de repente...

Era como se eu fosse um dos meus barquinhos de jornal solto, boiando ao sopro da brisa marota, num lago pintado de céu. Não tinha essa história de dia, de tarde e de noite: tudo era uma mesma coisa só e eu era um gigante, que estava em tudo que era lugar, ao mesmo tempo, brincando tudo quanto era brinquedo sem perder tempo entendendo a vida, como faz gente grande. Era tudo pra valer! Era o brinquedo que valia a vida, isso sim.

Quem duvidar de mim é só perguntar lá pros moleques: quanto mundaréu a gente não virou do avesso nos cantos daquele vale imenso? E os moleques também vão lembrar da vendinha de cacarecos da Dona Martônia. Eles por um motivo. Eu, por um motivo a mais do que eles... pois, atrás da vendinha daquela “espanhola de sangue bretão”, como ela se chamava, se estendia um descampado enorme, cheio de colininhas verdes espalhadas por entre uma meia-dúzia-de-três-ou-quatro árvores imensas, duas delas sequinhas de dar dó, que davam moldura pro crepúsculo ou serviam de trave pro glorioso e tão goleado Pimbagol Futebol Clube!...

Eu vivia indo naquele tapetão-sem-fim, que mudava de cor várias vezes no decorrer do dia, pra fazer absolutamente nada. Mas minha mãe via chifre na cabeça de burro pastando naquele descampado, porque minhas idas pra lá sempre me valiam versículos gemidos da bíblia pelas minhas orelhas adentro. Perdi as contas das vezes que tentei levar mamãe pra passear comigo lá no descampado da vendinha, pra ela conhecer o meu ninho de sabiás ou a Fofélia, uma cabrita que fazia a festa de um dos moleques, o mais velho...

Bobagem, a minha. Ela nem ia e nem me deixava ir lá. Até hoje eu escuto a sua voz ranheta, jurando que “pro bem da certeza vale até a marvadeza, por isso, se preciso fosse, te tranco lá no quartinho do fundo", que era um dois-por-dois entulhado de pedaços de madeira e metal, que meu pai usava pra trabalhar, antigamente, antes de ele...

Bom, mas a verdade é demorou um tempão até eu conseguir ligar a Léinha, filha caçula da dona Martônia, à aflição besta que arranhava o coração da minha mãe! Eu e a Leínha, a gente vivia lá no descampado, sim. Os moleques simplesmente sumiam de perto. Mas as curvas que causavam comichão nas minhas partes baixas (e também nas médias e altas) na verdade eram as das nuvens do céu, mornas, que umedeciam e coloriam o rosto da gente, enquanto faziam desfilar só pra nóis dois o Quixote, o Gato de Botas ou o Pererê, a Cuca, a Rainha Malvada e o Rei penando com Robin Hood... Não tinha quartinho do fundo que me fizesse largar mão disso tudo...

Eu não era louco! Eu preferia ficar ali, escutando toda a ladainha que a minha mãe proferia lá do balcão da cozinha, preparando a sopa e quentando o pão, que a gente ia comer junto, depois do meu banho de bacia, no fim da tarde... respirando entre um raio de luar e outro... distraído com alguma borboleta ou muriçoca...

Ela adorava me contar uma parte ou outra da saga que trouxe ela lá do fundão da Espanha, apaixonada pelo carpinteiro de origem inglesa... O sono sempre vinha me salvar daquela história que eu já conhecia de cor-e-salteado. Então ela me pegava no colo e me acomodava na minha cama, ao pé da janela aberta para as cantigas da noite.

Quando eu era menino, a vida era assim, sim...

Mas veio o dia que, de noite, póft!, um estampido rasgou o silêncio da madrugada. Não ficou na árvore do fundo uma só das corujas que me enchiam a imaginação antes do sono me levar noite adentro, pra outros descampados. Póft! Depois daquele estampido, a Noite deixou de ser a noite nossa de cada dia. E o rio da minha vida fez uma curva sinuosa...

Nos dias seguintes, apareceram barras de ferro em todas as janelas da casa e eu troquei minha brisa marota por noites abafadas. Sem nem sermãozinho que fosse, mamãe me esfregou nas fuças a chave enferrujada do quartinho do fundo, caso eu voltasse ao descampado da dona Martônia. E, com a respiração suspensa, eu vi outro alguém surgir detrás do olhar da minha mãe... Da noite pro dia, póft!, meu mundo mudou.

No colégio, o semblante da dona Loretinha Gouveia, a Terrível, pedia socorro. Sorria demais. Isso não tinha o menor cabimento naquela minha professora. Perdoou meus erros de grafia e até um carinho na Mariinha Preta ela fez! O suór que me escorria não era mais o mesmo, porque era viscoso e embolorante. Da janela trancada a cadeado, ao lado da minha carteira, meu olhar acompanhava o padre Silvano pulando da farmácia pra Liga Feminina Municipal e depois pra Santa Casa de Misericórdia...

Então veio a ordem do Diretor Almeida: todo mundo no salão paroquial, já. O Dodô Sarmento, o boticário, foi encontrado morto, com um tiro de sua própria espingarda na boca, lá no descampado... Não tivesse o seo Siqueirinha colocado boa força sobre mim, eu teria disparado pro meu descampado, atrás da árvore seca, do meu ninho de passarinhos, dos tobogãs de relva, das minhas nuvens, da Léinha...

Mas a coragem me trapaceou e foi por isso, minha gente, que a vida deixou de me levar...!

Ainda nos braços musculosos do velho Siqueirinha, eu me borrei inteiro. E, depois que ele me deixou na diretoria da escola e todos se afastaram de mim, eu voltei a me borrar e a me borrar novamente. Chamaram minha mãe, que apareceu e me levou, sem dizer um pio que fosse.

Parecia que a vida, que antes corria, agora recuou, me jogando num mundo que eu não fazia a menor idéia do que fosse e que não me causava boa impressão... Então, pro desespero da minha mãe, eu mesmo me internei no bendito quartinho do fundo. Pra compreender o significado da minha vida, coisa que nunca teve importância pra mim.

Mas eu não estava mais na Terra do Nunca!... Agora, enquanto eu, no quartinho, me afundava em minha própria bosta e pensamentos, eu ia ensopando com lágrimas tão desconhecidas quanto cheias de raiva e saudade os cacarecos deixados pelo abandono do meu pai... Estava tudo esfacelado. E um enjôo sem alívio me levava numa viagem sem chão nem sol fosse nem lua.

Eu nem sei quantos dias fiquei ali, trancafiado, acordando e adormecendo, imundo, cagado, me coçando feito um louco, até que finalmente brotasse à flor da minha pele o meu próprio batimento cardíaco... Uma festiva e verdadeira algazarra no fundo do meu peito.

Foi então que, novamente, POFT!, um novo estrondo mudou o curso do rio.

Tudo, tudo explodiu dentro, fora, em cima, embaixo e aos lados de mim... Nuvens vermelhas e mornas estilhaçaram com suas luzes tempestivas todas as frestas do meu quartinho querido, trazendo graça e calor à nudez da Léinha e levando pra bem longe os moleques, se esfolando inteiros numa corrida sem graça nem linha de chegada...

Mas a dona Martônia despachou a Léinha com dona Loretinha, prum colégio lá da Capital... As minhas nuvens perderam a cor... O meu descampado virou terreno baldio... E os moleques? Ah, eu sei lá dos moleques!

E eu deixei de ser menino.

Então passei a sonhar com muita coisa, sim... Se perdi meu descampado, ganhei o mundo inteiro, com muitas árvores secas e ninhos de pássaros incríveis para me cuidarem, desovando leinhas e mais "leinhas"...

E se passei a correr atrás da vida, pro bem da verdade ganhei o prazer de brincar de esconde-esconde e cabra-cega com ela...

biaggiolic@yahoo.com.br

DETALHES

No dia seguinte, Tenório acordou ainda era lua com friozinho gelado. Deu a boa espreguiçada, bocejando bem algo. Ô, coisa boa, isso! De bom grado, ele se levantou e apanhar a cestinha com café e torradas, para não demorar a sair. Já quase na porta, parou. Intuitivamente olhou para a vassoura, ali perto. Sem pensar muito no que diabos significava aquela idéia, apanhou-a e ganhou o alpendre da casa, onde por pouco não tropeçou no Clóvis, aceso, com a cauda em parafuso de contentamento.

Fingindo braveza, Tenório deu duas palmadinhas carinhosas na pelagem preta do cão e ambos partiram, juntos, como vinham fazendo nos últimos tempos, sem pressa mas em frente... Próxima parada? A pracinha, é claro, a apenas dois quarteirões, uns bons vinte minutos de caminhada.

A pracinha, é claro, estava vazia. Nem os pombos! Assim é que era bom. Em dois minutos, o Clóvis já tinha feitos seus xixis e se enrodilhava ao pé do banco de sempre, onde Tenório vinha se sentar, para esfarelar pão duro, tomar seu café puro, bem quente, acompanhado de torrada...

Então ele respirava fundo e, num 360 graus completo, girava o olhar pela praça toda. Seu semblante modificava-se e ele entrava em um estado de espírito que vinha cultivando nos últimos tempos. Escutando atentamente as batidas do seu próprio coração, Tenório percorria a praça esperando que seu próprio olhar tomasse a decisão de onde afixar-se.

Desta vez, aconteceu na banca de jornal... Ele olhou a banca por apenas alguns segundos e PUF!, ela desapareceu, cedendo lugar à antiga quitanda da italiana, com suas moscas, cheiro de alho e frutas...

Num instante ele já estava lá dentro, aboletado entre uma saca de cebolas e uma de arroz a granel, tiritando de medo, diante dos berros de seu pai contra a cobrança de uma velha dívida feita pelo Espanhol. Grito vai, grito vem e um silêncio que nunca mais saiu de sua cabeça, seguido do barulho do corpo de seu pai caindo no chão, ensangüentado. Seu coração batia enlouquecidamente. Sentia ainda o cheiro do suór de seu pai... Aquilo ainda era muito doloroso para Tenório... era melhor voltar.

Quando ia trazer de volta a banca de jornal, um detalhe fez ele esperar mais um pouquinho. Uma maldita casca de batata no chão da quitanda... um escorregão de seu pai... a frustrada tentativa do Espanhol pra afastar o facão... e seu pai sussurando alguma coisa ao ouvido dele, antes de cair no chão, para sempre...

Uma onda de calor insuportável invadiu Tenório, nesse momento. Que diabos teria seu pai dito ao Espanhol, naquele momento? Esperou mais um tempinho, ansioso por descobrir isso... mas logo percebeu que não era esse o momento ideal. Já havia feito uma descoberta e tanto, era preciso, agora, derramá-la na sua corrente sangüínea. Quem sabe amanhã ou depois, bem cedinho?

Trouxe de volta a banca de jornais, onde o menino já fixava nos varais as manchetes do dia. Sorriu. Estava realmente sentindo-se estranhamente aliviado e, além disso, ali estavam os pombos, dando bom dia pra ele e seus farelos de pão duro. Mais uma torradinha com café puro... e novamente seu olhar entrou em processo de mapeamento com seu coração.

Agora, a vez foi da agência bancária, com todos os caixas eletrônicos tão banhados de luz fria de hoje em dia. Um... dois... três.. e... PUF! Lá estava a Doceria Dolce Favo...

Dona Frida era uma doceira e tanto, nunca contou como seus quitutes tão triviais chegavam a tanta gostosura... Dizia ela que o segredo eram aquelas polcas que ela fazia questão de ouvir o dia inteiro, no gramofone. Seus fregueses retribuiam, ocupando a sua casa durante o dia inteiro. A criançada principalmente. E os casais de enamorados. E por falar nisso...

Seu coração lançou-se à velha palpitação, com aquele aperto tão familiar na boca do estômago. Estava ele, novamente, como vinha fazendo e refazendo nas últimas décadas, sentado na mesa do canto, ao fundo, ao lado do lavabo. Cida acabava de chegar... Como era linda, a Cida! Nesse vestido então... nem se fala... como ele a amava, no esplendor dos seus 17 anos! Aliás, sempre a amou, a vida inteira... Então, a notícia. E ele, como ontem, anteontem e nos últimos tempos, reviveu a raiva que sentiu naquele momento...

A culpa era dela, de sua tamanha formosura. Não fosse tão linda e encantadora, o filho do boticário não teria nem notado sua existência e ambos não teriam ido ter seus oito filhos, vinte netos e dois bisnetos! Nunca mais se interessou por outra mulher...

Já se preparava para recompor a agência bancária, quando, de relance, percebeu um olhar furtivo da filha da doceira derramado sobre ele... Isso o deixou muito mexido, agora, porque percebeu que foi dele, e somente dele, a opção por trocar essas "bobagens" pela longa carreira militar. Respirou fundo e recompôs a agência bancária. Esse pequeno detalhe sobre sua própria adolescência lhe trouxe um ar renovado para respirar... Quem sabe, amanhã ou depois-de-amanhã, bem cedo, ele não estivesse nas condições ideais para contar isso à Cida, lá na mesinha ao fundo, do lado do lavabo da dona Frida?

Um pombo todo branquinho, pousado em seu joelho, bicou-lhe carinhosamente a mão que segurava a torrada. Respirou fundo novamente, pelo puro prazer de respirar e respirar, sentindo o gosto do dia novo que chegava... e preparou mais uma dose de café quentinho, olhando ao redor, já bem incomodado com tantas bitucas de cigarro espalhadas pela sua pracinha... Levantou-se, usando a sua vassoura como apoio, decidido a varrê-la.

De repente, seu olhar foi capturado pela Casa Roxa, de onde um radiante rapazote furtivamente escapulia. Um... Dois... Três... e... PUF! Terceiro Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro. Quarta-feira, 14 de outubro, 13h17.

Uma pressão nas tripas que não tinha tamanho. Mal respirava, contendo a raiva e a frustração de uma aposentadoria compulsória. Isso não era direito. Lá estava o Coronel, com o maldito sorrisinho cínico... Coitado dele, esquecido que sua hora também chegaria (e não demoraria muito).

Que calor insuportável. E que discurso sem eira-nem-beira. Sentado na poltrona de veludo verde, diante daquela nobre junta militar, o Tenório viu-se remoído pelo silencioso desejo de vingança que o vinha acompanhando pelo menos nos últimos cinco anos. O que ele iria fazer, daquele momento em diante? O Coronel que não se importava nem um pouco com isso. Jogaria na gaveta toda a experiência de tantas e tantas expedições?

Com as tripas se retorcendo, ele se perguntava por que diabos foi voltar àquele lugar... não tinha o menor cabimento reviver aquilo, melhor era voltar. A não ser que... ah, os detalhes! Terminada a solenidade, ao cruzar o seu caminho, o Coronel lhe estendeu a mão. Se não tivesse tanta mágoa deste dia, bem que Tenório teria até suposto alguma bondade naquele olhar do seu superior, mas... enfim. O dito-cujo bateu-lhe continência e estendeu a mão, para um aperto. Que ele pegasse aquela mão e a enfiasse...!

No entanto, agora, Tenório parece ter visto, na mão estendida do coronel, um pedaço de papel bem dobrado... Um bilhete? Um recado? O que teria sido aquilo? O barulho de um ônibus chegando ao ponto arrancou Tenório do batalhão e restituiu a Casa Roxa à praça.

Com o coração ainda em estado-de-alerta, ele chegou a rir, sem querer. Havia alguma coisa ali, naquele bilhete, com certeza... E tudo tinha acontecido a apenas alguns anos, era bem possível que, se ele fizesse uma visita de cortesia ao Coronel... o batalhão havia sido transferido para um bairro bem próximo, não seria nada difícil encontrá-lo...

Totalmente refeito e fortalecido, Tenório tomou uma última dose de café, fechou sua cestinha de comes-e-bebes e, com o Clóvis no seu encalço, pôs-se a varrer as bitucas de sua praça, assobiando uma das polcas de dona Frida!

Maio/2006

biaggiolic@yahoo.com.br

O JARRO D´ÁGUA

Sabe de uma coisa, gente? Definitivamente tem coisa nesse mundo que não tem explicação!

Prova disso eu tive outro dia. Ia eu por uma rodovia quando a canseira me chamou prum descanso e eu parei num lugarzinho tão escondido na beira da estrada, que, quando eu entrei, nem as moscas deram sinal de vida.

Como ninguém veio me atender, eu mesmo me servi de uma cerveja e me larguei por ali, naquele baita silêncio... Silêncio! Pois sim... Era nisso, aliás, que eu vinha pensando, ao volante... Que que é silêncio? "Dize-me que o conheces e eu te direi que és mais mentiroso que político ou pescador!" Seja fora ou seja dentro da gente, sempre tem coisa acontecendo. Plenitude, sim, já é um termo mais acertado...

Mas, voltando ao assunto, fiquei eu lá, naquele lugar, sozinho, ouvindo piado de passarinho, chacoalho de folha d´árvore no vento, cachorro se coçando em algum lugar, a batida do coração, o sangue correndo na veia e essa algazarra toda que nunca acaba na memória da gente...

Mas teve duas coisas que me fisgaram: barulho de água e um cantarolado vindo de muito longe! Dono de si, meu coração já começou a buscar saída pela boca. Pus um dinheiro debaixo do copo e, sem eira-nem-beira saí pela portinhola dos fundos, na direção da água e da cantoria.

Encontrei uma picadinha e me embrenhei por ela não sei nem por quanto tempo até chegar na margem de um rio cujas águas corriam numa velocidade assustadora. A cantoria vinha detrás de uma grande rocha, mais adiante na margem, que eu resolvi contornar com uma sufocante sensação de urgência... Então, me deparei com uma visão chocante: as águas despencavam caudalosamente em um vão imenso e, bem no centro do rio, a um passo da queda, de pé sobre uma saliência de rocha, estava um senhor muito magro, nu.

Olhei ao redor e não tive a menor idéia de como é que ele havia chegado ali! Já no limite do meu desespero, eu descobri que o velhinho sorria muito, cantando, sem parar, pro abismo:

— Eu vou... eu vou... pra Casa agora eu vou... pa-ra-ra-tim-bum! pa-ra-ra-tim-bum! Eu vou... eu vou!

Comecei a chorar e, então, ele finalmente me viu e me saudou, com a palma de sua mão aberta. Pensei:

— Cuidado!

Então, em minha mente, ouvi sua voz, ainda cantarolante:

— Cuidado com o quê?

— O fim do rio! — respondi.

Lançando as suas mãos pro céu, ele soltou uma gargalhada tão forte que alguns pássaros até voaram dos galhos das árvores próximas.

— Então, moço, pronde é que vai essa água toda!?

Sem ter resposta pra dar, fiz sinal pedindo que ele voltasse, rio acima... e ele apenas sorriu. Então eu senti por aquele velhinho uma profunda amizade, admiração e saudade...

— Então por que é que o senhor não vai descobrir?

Seu olhar se entristeceu e eu me arrependi de ter pensado aquilo.

— Me faz um favor, moço. Enche esse jarro, aí no seu pé, com a água desse rio e leva pra ela... Pede pra ela regar o nosso jardim... Só me falta isso, moço!

Mesmo me sentindo entre a cruz e a espada, eu enchi o jarro... Então, rindo e cantando com toda força e alegria, ele abriu seus braços pro sol poente e foi conhecer o outro caminho do rio...

Quando, no céu, surgiu a Estrela Dalva, eu voltei com o jarro d´água pro bar e, lá, eu encontrei uma senhorinha, sentada diante do meu copo de cerveja. Muito triste, ela me olhou e eu lhe estendi o jarro d´água. Ela pegou o jarro e, chorando muito, e baixinho, bebeu fartamente daquela água, até serenar... Depois, pegou a minha mão e fomos, os dois juntos, regar um punhado de margaridas silvestres, quase secas... Depois disso ela sorriu, me deu um forte abraço e desapareceu, sorridente, dentro do bar...

Se alguém aqui me perguntar, eu nem sei onde é que fica aquele lugar... Mas, aqui entre nós, tem explicação pra uma coisa dessa?

biaggiolic@yahoo.com.br

PÉ DE PICAPAU

Era uma vez uma menininha muito bonita, com um sorriso que ia de uma orelha à outra, que mostrava a janelinha entre os dois dentões do meio. Chamava-se Marina e vivia numa casa linda, com seu pai, sua mãe e sua avó.

Ao redor da casa, e longe do poço de água, é que ela gostava de brincar, na companhia do CUCO, um picapau de feltro estofado, que ela ganhou de sua mãe, que havia ganhado da mãe dela, que era a sua vovó. Era seu maior amigo: até banho ela tomava com ele. Conversava, brincava, dormia e até comia, na sua companhia...

Mas ela também tinha a companhia do JOCA, seu irmão mais velho, que não gostava nem um pouquinho do picapau. Por causa disso, ele transformava a vida da irmã num inferno, escondendo o picapau pelos cantos da casa. Um dia, ele anunciou para ela que o Cuco havia sido levado para o fundo do poço pelo terrível PATO DO BICO ROXO, que dia mais, dia menos, vem buscar todo mundo para fazer torta de pastel para ele comer durante toda a Eternidade, que é um tempo que não acaba nunca. O Joca sim, é que era terrível...

Marina ficava desesperada, só de imaginar os olhinhos de lantejoula dourada do Cuco, dando adeus com as patinhas amarelas, o Cuco. Doente de saudade, ela chorava, chorava e chorava. Acariciando seus cabelos, o Joca dizia:

— Que pena. A uma hora dessa, já está na barriga do Pato... — e corria, rindo de dar raiva.

O picapau nunca mais deu o ar da graça na casa de Marina. Por isso, ela pegou tanto medo do Pato malvado vir apanhá-la com suas garras de aço para levá-la para a terra sem fim da eternidade, onde o Tempo nem passa nem acaba nunca, que decidiu tentar enganá-lo.

Ela sempre foi craque no jogo de Esconde-Esconde! Era capaz de enganá-lo... Então começou a se esconder nos cantinhos da casa, do quintal, da escola e até se afastou da Joice e da Bia, suas maiores amiguinhas. Só do Joca ela não escapava. Ele não parava de repetir:

— Olha lá! O Pato vem aí...

O tempo passou, com Marininha escondida da Vida. Até que chegou o dia em que ela decidiu nunca mais sair da cama. Estava cansada de fugir do Pato malvado. E foi assim que fez.

Tentando acalmar o desespero de tudo mundo, a vovó dizia:

— Meus queridos, calma... não vamos acelerar o curso do rio!

E mais tempo se passou. Quando Marina já estava bem fraquinha, e os dias já não tinham mais diferença nenhuma entre si, ela sentiu entrar pela janela uma brisa muito gostosa. Olhou e viu o Pato, pousado no parapeito da janela, com o Cuco numa das garras de aço. O picapau sorria para ela, não parecia estar sofrendo e nem tinha cara de pastel de torta... Em dois pulinhos ele se sentou na barriguinha dela e ali mesmo, com suas patinhas amarelas, ele bateu duas palmas, enchendo o quarto de luzes de todas as cores.

Quando Marina conseguiu olhar de novo para a janela, lá estava um JARDINEIRO pançudo e de olhar muito bondoso, que trazia nas mãos um regador dourado e um vaso cheio de terra fofa e quentinha.

Sorrindo, o Jardineiro estendeu as mãos e, feliz da vida, o Cuco foi se aninhar no meio delas. Acenou para Marina e mergulhou na terra do vaso. Então, cantarolando e piscando o olho para a menina, o Jardineiro regou o vaso com água do orvalho da noite. Para espanto dela, no vaso brotou uma mudinha de árvore que foi crescendo, crescendo, crescendo e tomando conta do quarto inteiro...

Dos seus galhos brotaram mil Cucos, que choveram no coração de Marina, estufando-o de felicidade...

Abril/2006

biaggiolic@yahoo.com.br

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