29/03/2009

A GRAVURA

Eu recebi por email esta gravura. Tempos modernos, novos impulsos, não é? Sim. Num ato de impensada coragem, por desconhecer completamente sua origem, cliquei o "abrir" e esta cena surgiu aos meus olhos, desviando-me completamente da análise do tal projeto de lei que se espalhava sobre a mesa do meu escritório, no 18º andar do legendário Martinelli, no centro velho desta Capital.
A primeira idéia que me veio deu-se graças à época da universidade, quando das aulas de História, diante de um documento, fosse ele qual fosse, a primeira missão (depois da decisão de encará-lo realmente), propunhamos a ele um bom "bate-papo"...
Quem seriam essas pessoas parecia ser a primeira pergunta à gravura, certo? Mas preferi silenciar um pouco e olhá-la simples e demoradamente... Sim, pois, aliás, mais do que uma idéia, foi uma sensação que me invadiu, a partir do momento em que entreguei meu olhar. E esta sensação, pelo menos a priori, eu compreendi como sendo a de CALMA...
Daí a um subsequente afrouxamento do nó da gravata cor de chumbo de seda chinesa, ganha daquele fornecedor no reveillón passado, foi um pulo tão impensado quanto o clique abrindo o anexo de origem desconhecida. Então, a perceber uma sensação quase esquecida de... de... de calma, eu acionei a tecla "mute" do meu terminal telefônico e o sinal vermelho sob a maçaneta da porta do escritório. Anete que se entendesse com os próximos agendamentos, o que, aliás, não seria a primeira vez. Ela é boa nisso.
Calma...
Trovoada!
Gosto quando isso acontece, desde menino, na vidraça da sala de aula, na escola, que embaçava, devolvendo pra dentro da sala o cheiro de suor de todo mundo. Então, o que vinha à tona era precisamente a respiração de todos nós. A de cada um de nós. E, debaixo dela, deitava-se o silêncio. Então, eu olhava e escutava a chuva na vidraça e o pensamento ia lá pro fundo de mim mesmo...
Como agora, diante desta gravura do Michael Zichy. "Quem é ele", pergunto ao Oráculo. Porém, — ai de mim! — são nada aproveitáveis as respostas do google... Deixa assim, então. Ao artista agradeço pela provocação que me causou este resultado de suas próprias inquietações e volto à gravura em si, um bico de pena muito delicado, sensível...
A forte sensação de calma passa a fisgar outras tantas, uma torrente, que busco dar uma refreada para não queimar etapas... Me parece mais importante, nesse momento, ater-me ainda a algumas observações ainda objetivas...
Por exemplo, que lugar estão os dois? Sim, um quarto, é claro. Mas, somente isso? Não, evidentemente. Um "quarto" não passa de quatro paredes cercando um móvel feito para dormir. Não é este, definitivamente, o nosso caso. Ali não é um quarto, muito menos aquilo não é uma cama. Não. Mire aquelas paredes...
Estão nuas! E não é à toa... Precisam disto pra emoldurarem o acontecimento sobre o leito destes amantes, exilados nesta alcova! Tinha de ser assim, só assim... paredes nuas retém única e exclusivamente o cheiro dos dois, paredes nuas, o leito, os almofadões, a cabeceira da cama e a mesinha ao lado, com copos, o vinho, a vela acesa do castiçal rústico...
Eles não estão nus... mas o que vestem são como sobras do que mostram fora dali... São jovens e querem estar ali... e é só! O resto é respiração.
Descarto a primeira camada desta suculenta cebola e finalmente me dou aos amantes... Fumam! Apenas fumam, mas... que nuances de textura e calor sorvem os lábios de cada um deles? A que beijam, nesta suspensão? Sinto muita vontade de apreciar o semblante dela... está oculto de mim! Chego a entortar-me para vê-lo melhor... mas não. Não posso.
Então, sem que sequer eu "pense em pensar" nisso, a imagem de Anete me invade, emprestando à moça da gravura uma determinada cor... mas... como assim? Tudo não foi mais do que um fim de festa como qualquer outro nos últimos dez ou doze anos de empresa, nem me lembro o motivo daquele coquetel, certamente outra empreitada do Marcondes pra bater o martelo com a Incorporadora, nada mais. Um fim de festa, apenas isso!
Simplória demais, embora muito, muito, muito... doce! Vai ver que o Santos tinha mesmo razão: era melhor tê-la demitido e chamado uma terceirizada, dessas que trabalham no "sistema carrossel" de rotatividade inter-empresas. Se a Lolah descobre? Que quiprocó vai ser... e às vésperas das alianças... Não, não.
Outra surpresa me remete à gravura, então! Sinto o gosto de chocolate em minha boca... tabaco de chocolate... e um profundo, um indescritível prazer me invade... um prazer com gosto de chocolate... com cheiro de chuva embaçando a vidraça... lençóis suados... umidade e maciez... e Anete sorrindo pra mim, com olhar maroto...
Largo ao longe a gravata e abro os botões da camisa. Calor? Não... não é de metereologia que estamos falando, aqui...
Amplio em tela inteira a gravura e passo a respirá-la... Ouço uma canção, cantarolada bem baixinho... uma canção muito antiga que não consigo reproduzir... mas sei muito bem de onde ela vem: é dos lábios cerrados do Amante... Ele é um Músico! Um poeta que ganha o sustento cantando nas tabernas do vilarejo... Ele canta enquanto fuma seu chocolate e sente as carícias da língua dela...
Espera! Não... Não é dele, de seus lábios, que jorra a melodia, não!... É dela, de Anete! É ela quem canta... o prazer que sente por lhe dar prazer... o sabor dele... Os pés do poeta! Ela se aninha entre seus pés... oferecendo a ele, ao mesmo tempo, a maciez de seus cabelos e a umidade de seu púbis...
Um sinalzinho de nada no canto da tela faz-me perder a respiração, como se tivesse levado um soco no meio do estômago, como se alguém houvesse batido à porta daquela alcova...
Ao reconhecer o sinal da uma mensagem instantânea de Lolah, sinto-me como violentamente invadido, ameaçado naquilo que tenho de mais meu, verdadeiro e puro: aquela gravura!
"Quero as nuvens. Vem" — diz a mensagem, com o maldito cursor piscando, esperando...
Fecho imediata e violentamente a janelinha da mensagem para voltar à gravura, mas Anete já não mais está ali, apenas o desenho de uma moça masturbando-se no tornozelo de seu amante, que fuma um cachimbo enquanto jorra seu leite nos lábios dela...
março, 2009

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