10/12/2008

TEATRO I

O GRITO DA SIRIEMA

Escrito em Resende (RJ), em 2008

VOZ (off)
A S.I.R.I.E.M.A. — Sociedade Internacional de Repúdio Intensivo ao Endeusamento do Meio-Ambiente abre a sua Convenção Anual. Nossos sinceros agradecimentos a todos os nossos ilustres delegados clandestinamente aqui presentes. E, principalmente, aos nossos maiores financiadores, a Assum Preto Petroleo Company, a Pau-a-Pique Madeireira e a Xobixofeio Exportadora de Animais Silvestres, sem os quais nossa resistência seria vã. O tema da convenção deste ano será "Consciência, Ação e Atitude" e, para falar sobre isto, receberemos com calorosos aplausos nossa fundadora e presidenta vitalícia, a Senhora Amandinha Amanda!

ELA
Obrigada! (mais aplausos) Oh, muito obrigada! (mais e mais aplausos) Já falei "obrigada"... (aplausos) Corta! (os aplausos cessam, a seco)
Bom, fico imensamente feliz de ver nossa assembléia assim, tão lotada mas... não trago boas notícias do front, meus amigos. (burburinho de preocupação) Sim, sim, não vou mentir a vocês. Tudo indica que, desta vez, o Inimigo resolveu falar a sério.
A situação já se mostra, no mínimo, "desconfortável". E esse é o primeiro passo para ela se tornar "insuportável". Se ficarmos parados, o destino dela será se tornar "irreversível".

VOZES
Verdes malditos! (aplausos)

ELA
Pois eu afirmo, senhores, eu afirmo, senhoras: A CULPA NÃO É DELES! Mas nossa! Sim, a culpa é nossa. (burburinho)
Quem foi que zombou deles quando, de fato, deveria tê-los arrancado do nosso jardim pela raiz? NÓS! Quem foi que se esbaldou de rir, quem achou graça das suas maluquices, das suas "traquinagens" quando deveria tê-los colocado no colo e lhes dado, isso sim, umas boas palmadas na bunda? NÓS! Quem foi que deixou que aquelas barbaridades de Kyoto ou as esquisitisses do Green Peace ou os melodramas do SOS Mata Atlântica tomassem essa aura heróica de hoje em dia, meus queridos delegados? NÓS!
Pois a hora é de lambermos a nossas feridas e encararmos a verdade: fomos frouxos! Não fomos organizados o bastante para dar a devida e mais do que necessária sustentação à nossa abençoada Guerra Santa contra essa corja!
E o pior! Não demos a merecida sustentação aos nossos grandes líderes e hoje vemos nosso pobre George levando sapatadas no Iraque! Que Deus o guarde entre os Anjos.

VOZES
Ave, Bush!

ELA
Um mártir na resistência ao devaneio de Kyoto, aquele atentado desumano contra o estilo de vida tão bem arquitetado por nossa tão abençoada e bem-sucedida Sociedade de Consumo.
Querem diminuir a emissão de gases poluentes no planeta? Que parem de peidar! (aplausos) E deixem nossos escapamentos e chaminés em paz! (mais aplausos) Viva a Liberdade, o nosso sagrado direito de fazermos o que bem quisermos com aquilo que que pagamos!

VOZES
Viva!!!!

ELA
Vamos parar definitivamente com churumelas, meus queridos! Vamos erguer nossa cabeça, encher o nosso peito de orgulho por nosso estilo de vida e gritar a plenos pulmões: NÃO!

VOZES

Não!!!!

ELA
Não ao Tratado de Kyoto!

VOZES
Não!!!!

ELA
Vamos botar os pingos nos is. Alguém aqui pode jurar que já viu, ao vivo e a cores, ou já tocou, pegou um pedacinho dessa lenda chamada "camada de ozônio", pra levar de lembrança pra casa?

VOZES
Papo furado!!!!

ELA
Falam tanto em "aquecimento global", não é mesmo? Derretimento das calotas polares! Mudanças climáticas! Ora, façam-me o favor!!!!!
Caríssimos companheiros e companheiras de batalha: ATENÇÃO! Muita atenção, nessa hora. Falhamos e o Inimigo conseguiu driblar a nossa vigilância, boando suas mãos verdes e musguentas no nosso principal escudo de proteção... (burburinho) Sim, a MÍDIA!

VOZES
Jesus-maria-josé!!!!!

ELA
Sim, sim. E a situação foge do nosso controle, agora... Já pararam pra observar que tipo de notícia sobre o Tempo estão dando as nossas mocinhas-bonitinhas-e-sorridentes? Já não são tão simpáticas como gostaríamos... Isso sem falar que a maioria dos jornais e telejornais já mostram abertamente os tais cataclismas e, vejam só a que ponto estamos chegando, meus amigos: eles já afirmam que "a culpa é da humanidade"!!!!

VOZES
Traidores!!!!

ELA
Culpa?! Que culpa? Falam também, à torto e a direito, que "somente 3% de toda a água existente no planeta é potável" e a população não pára de crescer! E querem que a gente ECONOMIZE ÁGUA! Falam de "consumo sustentável"!!!!

VOZES
Balela!!!! Nhenhenhém!!!!

ELA
Pois eu digo NÃO!

VOZES
Não!!!!

ELA
Não vou deixar de tomar meu banhinho básico de hora-e-meia, porque eu pago e a água é minha! Meus cabelos merecem ser amaciados pelo vapor do chuveiro!

VOZES
Sim!!!!

ELA
Minhas cutículas precisam ser amaciadas na água quente!!!!

VOZES
Sim!!!!

ELA
E não vou deixar de lavar minha calçada pelo menos duas vezes por dia, não, senhor!!!! Porque o povo passa ali o dia inteiro e, além disso, ainda tem xixi e cocô de bicho!!!! Aí chove e forma aquelas poças de água suspeita... um nojo!!!!

VOZES
É isso aí!!!!

ELA
E não me venham com esse trololó de estatizar os mananciais das fazendas que vovô me deixou por herança, pois não tem nada que seja mais sagrado nesse mundo do que a Tradição, a Família e a Propriedade!!!! (aplausos) Qual é o grito de guerra da SIRIEMA, meus amigos?

VOZES
Ema-ema-ema, cada um com seus problemas! (aplausos)

ELA
Olhem ao redor e vejam a que ponto nós chegamos. É justo que nossa convenção anual tenha que acontecer nesta caverna, às escondidas, clandestinamente?

VOZES
Culpa do Inimigo!

ELA
Vamos nos reerguer, meus amigos... levantar nossas cabeças e encarar nossos horizontes, que são os nossos tempos de glória! É melhor que seja assim, pois nos fortalecemos para a Grande Virada rumo ao Velho Mundo, todo nosso e só nosso!
Aquilo sim é que era vida decente! Água era só água. Terra, bicho e floresta existiam só pra nos servir, que é como tem que ser, ora bolas! Chega de subversão!
Quem aqui não tem saudades daquelas horas tão agradáveis, passadas junto com bons amigos, nos divertindo sob o sol da tarde, atirando e abatendo pássaros ou micos-leão-dourados ou até mesmo elefantes nas vastidões africanas? Vocês se lembram desses bons tempos, quando fazíamos o que bem entendíamos com os recursos naturais da nossas terras, quando éramos apenas pacatos, felizes e soberanos latifundiários? E hoje, como é que vivemos?

VOZES
Com medo!!!!

ELA
Somos nós a espécie em extinção, companheiros! Estamos condenados por esses malditos movimentos organizados que exigem dos governos que nos tomem as terras não-produtivas!

VOZES
É o Armagedon!

ELA
Exigem que nossas empresas deixem de pensar somente nos lucros e ponderem sobre "responsabilidade social e meio ambiente"!

VOZES
Comunistas!!!!

ELA
Borbadeiam nossas crianças com idéias de Reduzir, Repensar, Recusar, Reciclar e Reutilizar os bens de consumo que nossas indústrias vivem despejando no mercado!!!!!

VOZES
Pedófilos!!!!

ELA
E nem nos deixam fumar mais o nosso cigarrinho onde bem quisermos... PRECISAMOS CONTRA-ATACAR!!!!

VOZES
Sim!!!

ELA
Morte à Consciência Verde!

VOZES
Morte!

ELA
Eu proponho, senhoras e senhores, um ATO TERRORISTA!

VOZES
Oh!

ELA
Que a História se reparta em antes e depois da SIRIEMA! Que o Velho Mundo ressurja impávido e colossal, feito uma fênix, das cinzas desta maldita Nova Era!!!!

VOZES
Sim!!!!

ELA
Sejamos originais e à frente do nosso tempo. No próximo 11 de Setembro colocaremos um vírus melequento na web que infestará o mundo inteiro e só o desativaremos quando o mundo voltar a ser apenas o nosso parque de diversões! Vamos lá, companheiros, à luta! Cantemos o nosso hino...

VOZES E ELA
EU TENHO A FORÇA
SOU INVENCÍVEL
SOMOS AMIGOS
E UNIDOS VENCEREMOS
A CORRENTE DO MAL...

(barulho de sirenes. Entram dois enfermeiros, colocam-na em camisa de força, arrancam o cd de "offs" e levam toda essa merda embora)


PEQUENOS MONÓLOGOS

O PONTO

... e foi quando eu parei o carro no meio-fio que me apercebi de duas coisas muito interessantes. A primeira delas: a distância que já havia percorrido. Um bocado, à primeira vista. Olhei para trás e, graças ao último aclive, constatei boa parte do caminho trilhado. "Boa parte" é maneira de dizer, pois já se perdia atrás da última curva todo o resto do percurso. Mas é bom poder ver. Isso até dissipa, alivia bastante a canseira. Aliás, para ser bem sincero, me faz até questionar a própria canseira. É incrível, vale a pena conferir... Não vou mentir: tive que me acomodar sobre a relva tamanho o peso da saudade que senti de tudo o que pude rever, lá do topo daquele aclive. E não foi fácil resistir à tremenda tentação de descer colina abaixo, como se isso pudesse me devolver a experiência vivida (ou não vivida) em cada passada minha por ali... Deixei isso pra lá e respirei fundo. Respirar fundo é um antídoto e tanto pra essa terrível síndrome que impede a gente de prosseguir na caminhada. Parece que o Ar que entra se choca com o que já está ali dentro e nesse redemoinho todo, devolve pra atmosfera o que não tem mais cabimento e precisa ser rarefeito lá na alta estratosfera. O que fica é ar novo, polvilhado de idéias novas... Essa foi a primeira impressão! A segunda coisa que percebi foi a paisagem à minha frente! Imensa, meu Deus do Céu! E repleta, polvilhada, estufada de opções. Cadê você, Destino meu? – pensei eu, apavorado e, ao mesmo tempo, quase sufocado de ansiedade e falta de chão. Cheguei a olhar na direção do porta-luvas do carro, onde eu sabia estar um livreto de horóscopo deixado por alguém ali. O Futuro! Então eu percebi que o futuro é a mais previsível de todas as coisas. Sabe por que? Ora, qualquer um de nós, seja quem for ou quando for, sabe muito bem onde é que ele está: no futuro! Que bobagem, meu Deus. Por que precisei andar tudo isso pra entender isso tudo? Dei um passo, dois passos, dez e cem passos adiante e o futuro ainda permanecia lá, repleto de opções e tendências e probabilidades, deitado eternamente em berço esplêndido e no FUTURO. Desisti de ir até ele, mesmo porque descobri também que, à minha frente, encontrava-se o próximo declive. Então me lembrei dos meus fracassos e chorei. Não muito, porque já havia aprendido a respirar fundo. Respirei fundo e saquei que cada fracasso meu me levou a algum lugar que me abriu alguma porta e, portanto, me impulsionou. Então, ora bolas, não eram fracassos! Então chorei. Muito, porque o ar novo havia me trazido um bocado de bom humor. E bom humor é a capacidade de ver graça no avesso de tudo. E isso não é nada pouco. Entrei no carro e liguei o motor... Tantas opções, tantas tendências e tantas probabilidades! Fiz que nem Quixote: entreguei o carro ao declive. Eu sabia muito bem que, a partir daí, as opções é que me escolheriam...



CENAS DE TREM
eu adoro andar de trem... nem tanto pelo conforto que eles finalmente estão oferecendo a nós, que sempre o merecemos, mas mais por conta dos infindáveis estímulos que seus vagões me oferecem para escrever... Estas três primeiras cenas estão à disposição, o que significa que este é, no fim das contas, um "work´n´progress"...!

CLEODÉCIO, O FLAUTISTA...
e tem também o Cleodécio, não sei se vocês lembram dele... É aquele nanico, que geralmente aparece no terceiro vagão e, pra ladainha, mal espera fechar a porta, de tão acostumado já está. Calça tergal sem vinco e tão manchada que as manchas nem aparecem mais, camiseta de político debaixo da camisa de gola e sacola a tira-colo, com bonezinho do Coringa com a aba caindo sobre o olho esquerdo. Então, é ele. Parece que tá sempre com o olho fechado, sabe. Mas é daquele tipo de gente meio bruxão, que mesmo de olho fechado põe na gente a sensação de tá sendo olhado de perto, no fundo do lado de dentro... Tem gente assim nesse mundo, já reparou? Pois é. É o caso do Cleodécio, que entra no vagão e já é uma farra só de ver o corpo dele se inteirando com o balanço do trem, os pés descalços nas havaianas, o nanico fuçando a sacola pra tirar sua flautinha doce do meio daquilo tudo que ele traz ali dento, blusa de frio, uns tomates e uma papelada que ele diz ser tudo receita médica... Uma flautinha babada daquela que a criançada compra em papelaria, dá dois real e ainda vem troco. Mas tudo bem, que, mais que a flauta em si, o que mais importa é a Música, né! Mas é aí que vem a parte-dois da farra: é tiro-e-queda, o Cleodécio fatalmente dá uma boa resmungada da vida (crente de pedra que ninguém tá ouvindo) e leva a flautinha pro lado direito da boca. E aí, sem mais delonga, ele tasca um robertão da fase áurea, do jeito que só ele imagina, acompanhado pelo seu pé esquerdo no chão e pelo chacoalho das receitas na mão esquerda, que é com a que o miserável ainda colhe as moedas do povo. Graças a Deus o “concerto” não dura mais de minuto, logo o nanico vem com a cantilena de anteontem: [voz do Cleodécio] “É isso aí, minha gente, foi só uma palhinha. É brincadeira mas é sério, viu. Eu tô pedindo a sua moeda é pro marmitex e também pro meu colírio, que toda vez que eu vou comprar parece que a farmácia quer que eu deixe meus olhos lá, tão caro que parece que tô pagando duas vez. Mas meus olhos tão ruim, os coitado, mas isso é outros-quinhento, que vocês não vão querer saber, né...” Aí o Cleodécio leva de novo a flauta pro canto da boca e rasga um Raul [assovia um trecho do “Quem não tem colírio”], ainda acompanhado pelo seu pé esquerdo, num ritmo que só o nanico entende. [Cleodécio] “Mas eu não uso óculos escuro porque, se não sou beleza, também não sou maluco. Então, como quem vê cara não vê coração, eu vou pedindo a sua ajuda pra forrar a barriga e o ladrão da farmácia...”. E lá vai o Cleodécio, tocando o mesmo robertão com uma só mão...
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ARACI, DA LIMPEZA
Outro dia eu tava no quinto vagão, lendo um conto do Tchécov, sentado no chão, bem naquele vão maravilhoso, reservado pras cadeiras-de-roda, sabe, que até ar condicionado tem. Ainda bem que cadeirante é coisa que não abunda na linha que me serve. Naquele dia, aquele pedaço do trem era um oásis de secura naquele vagão ensopado de pés molhados de chuva... Mas fala a verdade se não é chique demais trem em dia de chuva! Tem um quê de Europa, não tem? Eu nunca fui lá na Europa mas nem precisa, pois cansei de ver isso no cinema e nos livros... O silêncio, o chacoalho quase silencioso desses vagão de hoje em dia, os passageiro com roupa de frio e um monte de gente lendo... Às vez, eu fecho os olhos e fico imaginando que a voz vai anunciar “Estação Dinamarca”... “Estação Paris”... “Estação Dublin”... ou, então [clima de terror], “Estação Treblinka”!!!! E ainda tem gente por aí dizendo que o povo não gosta de ler... Olha, até na hora do rush esse tom euro-chiquetê me deixa feliz, sabia? Mas, nesse dia, quando a porta abriu na terceira estação, esse clima todo foi pro beleléu, assim, feito bolhinha linda de sabão espatifada na parede crua. Como pingo de gordura no lençol de cetim dourado... Como discurso de político num contato imediato de terceiro grau... Enfim, já deu pra perceber o drama, né? É que entrou no vagão a Araci, da empresa da limpeza. Só pra você ter uma idéia da tijolada, o povo conseguiu abrir um clarão no meio do vão entre as portas. A Araci é uma neguinha que não tem mais que metro-e-meio de altura mas é daquele tipo de gente que, só de respirar, já tira o ar dos outros. O vagão nem tava lotado mas, também, se tivesse, ia tudo dar no mesmo, com a aparição daquela “entidade” ali dentro, rastreando o chão com visão de 360º, com olho de microscópio mesmo, de onde nem titica de bactéria escapa! Pois quando esses olhos vieram lá do outro lado na minha direção, minha virgem-santa que eu nunca me levantei tão rápido daquele chão. E foi na hora mais certa, viu. Porque os dois canhões da cara da Araci miraram em cheio um rapazote distraído na leitura (não era um Tchécov, mas um horóscopo, o que também não fugia tanto assim do charme europeu). “Je vous salue Marie”, que quando a Araci se deparou com o pobre diabo sentado naquele chão, juro que, na minha vida toda, eu nunca ouvi tamanho silêncio... [Araci, puxando a água com o rodo] “Mas é, viu! Mas é! Quer dizer, então, que o Armagedon chegou e o Pai Eterno não me avisou, foi? Mas eu posso saber que pardieiro é esse que tão pensando que o meu vagão é? A casa de vocês pode ser a pocilga que vocês quiser, mas não o meu vagão, que é lugar pra gente de bem, correta, educada, gente fina, viu! [para o rapaz] Você tá me compreendendo, seu... infiel? Eu acho é bom, que eu não vou falar duas vez. Então presta atenção... [usando o cabo do rodo para apontar] AQUI: CHÃO. AQUI: BANCO. AQUI: APARADOR. Logo... Aqui: Bicho! Aqui: Gente! Aqui: Civilizado! Tu tá me entendendo, gentio? Olha só pra você, tome intento, vergonha na cara, ponha-se no seu lugar, aprenda o que é respeito, selvagem! E SAI DO MEU CHÃO!”. E tudo isso, minha gente, no trecho entre uma estação e outra, porque foi só a porta se abrir na estação seguinte, que a Araci saiu curvadinha, desejando “Paz-de-Deus” a todos...
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SÍSIFO, O PREGADOR
Mas tem dia que não tem jeito e a gente nem marca toca mas é a toca que marca a gente, viu. Foi o caso! O rush. E o termômetro tá na catraca da transferência do metrô pro trem. Um funil de bico estreito, que é feito de propósito, pra dar tempo do trem absorver tanta gente. Faz parte. Mas é um exercício e tanto, ah, se é! Sabe como é que eu me sinto, nessas horas? Cavalinho de carrossel. Sabe como é, né? Girando sempre no mesmo eixo, com a mesma música, que de tão antiga até parece novidade, sabe? Levando a alegria dos outros no lombo... Pois é. É assim que, às vezes, eu me sinto no trem: acordo, vou daqui pra ali, dali pra acolá, depois volto pra ali e dali volto praqui. [imita o cavalinho de carrossel assobiando a musiquinha] É aí que eu me lembro sabe de quem? Do Sísifo! Tem aquele da mitologia grega, condenado a carregar, todo santo dia, uma pedra até o alto do morro pra, no fim do dia, a pedra rolar morro abaixo e tudo começar de novo no dia seguinte... É até meio por aí que eu me sinto... mas acho que nem tô sozinho nessa. Mas o Sísifo que eu tô falando aqui não é o da mitologia, não. É daquele desgramado que adora a hora do rush pra pregar a palavra de Deus no meio do vagão lotado (geralmente no 2), que é o que eu costumo pegar porque me deixa pertinho da roleta de saída e que, nessa hora, já sai estufado da estação inicial! O que mais me irrita sou eu mesmo, que vira-e-mexe esqueço do Sísifo e, por hábito, me enfio no 2. O infeliz tem metro-e-noventa de altura e quase um, de largura, um vozeirão do Cão e uma vontade louca de ser ouvido (como acontece com gente assim, na maioria das vezes). E, pra completar o meu azar do dia, o único lugar livre que eu encontrei pra eu me sentar foi um teco de chão que me colocou entre uma bunda imensa e uma anca ossuda, bem próximo de um molequinho sardento com olhar de faísca e a menos de dois metros do infeliz do Sísifo. Eu nunca rezei com tanto fervor pedindo pra Deus impedir o fechamento daquelas portas e a partida do trem. Mas desde quando Deus faz plantão na hora do rush? [voz do maquinista liberando a partida, citando o destino do trem e a campainha de fechamento das portas. Sísifo] “Na paz do Senhor Deus, amém?! (Pro meu desespero, sempre tem alguém que responde o tal do "amém"!) Do Deus de todos nós, meus irmãos e minhas irmãs, o único, o onipotente, o onipresente, o onisciente...” Bem nessa hora o molequinho sardento gritou no colo da mãe: [Molequinho] “Que que é onisciente, mãe?”. Raposa velha, o Sísifo não perdeu tempo... [Sísifo] “É ser Deus! Que sabe tudo, que tudo vê e tudo pode!”. [Molequinho] “Ô, mãe. Quem ensinou tudo isso pro Deus?”. A coitada da mãe, uma gorduchona com a cara escondida no fundo duma Revista Capricho, nem respirava. [Sísifo] “Deus sempre existiu e sempre existirá! É o princípio, é o meio e é o fim...”. Aí não teve jeito, que o Sísifo chamou o Capeta pro pau, que gritou sei lá de que fundão do trem: [Voz anônima] “Viva Raul!”. O raposão do Sísifo mandou aquele risinho de quem acredita piamente que o que vem debaixo não lhe atinge, sabe? Pegou o pentinho de osso e penteou as mechas com uma desenvoltura que não rimava nada com a hora do rush. E soltando o vozeirão por cima do destino nada celestial que alguém lhe desejou, o pregador inundou o trem com um Apocalipse de fazer tremer o garoto sardento, que nem pestanejou e mandou o dedo médio pra direção do Sísifo. [Sísifo]


POMBA À VISTA






para Dona Bete, da Escola Livre de Teatro

[Uma mulher surge chamando os pombos, com farelos de pão ou algo do gênero. Está com as roupas roídas mas mantém uma postura altiva, de quem não se alinha ao corpo envelhecido, pois a mente ainda vive em uma época muito distinta da realidade atual. Chama os pombos e, ao mesmo tempo, cantarola]

[cantando]
hei, pombo, que é que deu
o que sou eu
pouco importa pra mim
sem início, nem fim
eu vou por aí...

[encontra um cigarro no chão e dirige-se a um moço da platéia]

O moço tem fogo? É pra dar uma enfumaçada nos miolos e ver se alguma coisa aparece na cachola, sabe... Que diabo de lugar é esse aqui, mulher de deus... Aquela árvore ali, eu... eu acho que já vi aquela árvore ali, tinha uma... uma pomba... é! Tinha uma pomba com um raminho bem verdinho no bico, como num conto, numa história que um dia, sei lá quando, nem sei quem me contou... Eu gosto tanto de pomba... pomba tá sempre cantando... baixinho, uma pra outra... Gru-gru! Gru-gru! [pausa]
Moço, olha ali, faz favor. Me diga, moço: tem uma árvore ali, não tem? De fato, de verdade mesmo, né? Tem? É, tem sim. O moço me desculpa mas é que tudo isso não cabe aqui dentro [cutucando a própria cabeça], sabe... [pausa]
Sol demais... eita. Mau sinal, viu... Luz demais frita as idéias... O moço tem cigarro? É pra dar uma enfumaçada nos miolos e ver se alguma coisa aparece na cachola, sabe... Que diabo de lugar é esse aqui, mulher de deus... Ei! Aquela pomba ali... eu... eu já vi aquela pomba ali, vi sim... aquele raminho verdinho no bico... branquinha... depois do temporal... Foi no dia que o Amaro... [pausa repentina]
Que é que a moça tá cochichando aí, eu posso saber? Por que não tasca logo na minha cara, hein, mocinha? Eu posso tá gagá, mas besta eu que não tô, então a moça faz o favor de ter aprumo, porque a praça não é um lugar que menina boa venha pra... [pausa repentina]
É que o cigarro é um companheiro, sabe, moço, coloca fio na meada, faz a hora passar, o bonde chegar... Aliás, já não passou o 47, pro Largo da Misericórdia, não? Deve ser bosta de cavalo ressecada outra vez... com um sol desse, onde já se viu ressecar as bosta?... Merda de prefeito que não põe mais gente pra limpar os trilhos, que o Amaro, a essa hora, já deve de tá chegando pra janta... [pausa]
Mas que diabo de lugar é esse aqui, criatura sem rumo... Ei! Aquele raminho... aquele ali, ó... eu... eu já vi aquela verdurinha de ramo delicado, juro que vi... no bico dum galho d’árvore, depois da tempestade que despencou no dia que mataram o Getúlio! Virge-nossa-senhora-da-santíssima-trindade-celestial-dos-último-dia-da-anunciação-divina!!! [olhando pra si mesma] Onde é que vai ser o velório, que um homem desse não merece ir pro fundo do mundo sem um beijo meu no sapato esquerdo! É nisso que dá ser herói do povo: os home mata! Mas eles não sabe que, no mais da conta, tiraram o corpo mas nunca a vida desse santo! [procurando nos próprios pertences] Cadê?! Eu já tirei a minha... mas cadê... é uma conquista do trabalhador, o Amaro foi tirar a dele e a minha assim que... [pausa]
Sol demais... eita. Mau sinal, viu... Luz só é bom de ver na sombra... não dá pra tomar banho de labareda, nessa vida...
[cantando]
hei, pombo, que é que deu
o que sou eu
pouco importa pra mim
sem início, nem fim
eu vou por aí...
O moço tem cigarro? É pra dar uma esquentada na memória, sabe... As vezes a cachola brinca de esconde-esconde, que nem os meninos... [pausa]
Cadê aqueles peste? [localizando duas pessoas da platéia] Seus filhos duma puta, já pra dentro, que teu pai não quer saber de cria ao léu, quer fazer o favor de entrar? AGORA!!! Que a comida tá quase que pronta e hoje tem milho pra mistura [eufórica] e não quero ver ocê brigar com a tua irmã, Leoncinho, que tem grão pros dois, pros quatro! Mas vá, Lidinha, tome o banho na água da roupa, que já tá cheirosa do sabão, pro teu pai ficar feliz quando chegar... [pausa]
O 47!!! É ele, é? Fala pra mim, moça, que as vista tão tronxa e eu... eu tenho que ir lá pro Largo da Misericórdia, olha aqui no papel, faz favor... lê se tá certo, que as letra pra mim é labirinto... [apresenta um bilhete e espera até que a pessoa leia: “ME ENCONTRA MEIO-DIA NO LARGO DA MISERICÓDIA, MULHER. AMARO”] Pois então, to certa! E atrasada! E o coração na boca! Sabe como é?... [confidente] Como é que eu to, diga... Esse cabelo que não toma jeito... Um cheirinho, como caía bem... Vinte anos junto merece uma cervejinha, não merece? O Amaro sabe fazer cada coisa durar um século... [maliciosa] Será que a moça me entende? A moça já ouviu falar do espacati-com-sushimi? Não, né? Foi o Amaro que inventou e... [pausa] Espera!!!... aquela pombinha ali... Eu já vi, sim... branquelinha... Mas que diabo tá acontecendo aqui, com um baita solão desse depois dum chuvaréu daquele tamanho? Nem poça que sobrou... A pombinha deve de tá com sede, mastigando aquele raminho com o bico pra tirar suco verde... [para o moço do cigarro] Eu acho que a gente já se trombou por essas quebradas, viu, moço... Sim, sinhô... Eu posso não lembrar muito do que eu sou mas nunca esqueço dos outros, não... Seu safado, fio dum corno, adora fazer essas coisa comigo, né? Puto! Você não ouviu o vigário mandar tomar cuidado com a surpresa, que é ardil do Coisa-Ruim?! [Finge receber do moço da platéia um papel escrito com um poema. Emociona-se] Mas, você... ora, seu... Que é que tu tanto quer me escrever verso se tu sabe que pra ler a Virge não me fez, homem...? [sarcástica, pra uma mulher da platéia] Você, Miranda... que é tão estudada... que é tão versada... que tem bibloteca em casa... ele já fez um desse pra você, fez? Fez nada! Contigo a coisa pára assim que a brasa apaga... [para o moço, novamente] Agora, que é que eu tenho aqui dentro, né, homem, que não morre com o gozo... que faz poesia.... Ai, Amaro! E se, agora, nós for parar na caldeira, hein? [com toda quentura do olhar] Vai ser tudo culpa tua, seu Carrasco, que tá me dando essa maçã! Tu não sabe que o Largo da Misericórdia é um antro, que esses cabarés são fogo puro, que mulher aqui não tem dono? Donde é que você tira tanta certeza de que eu quero tá aqui, debaixo da luz desse sol, misturada com esse mulherio sem paz, contigo, homem? Onde é que você vai buscá esse olhar baixo, esse riso quieto, esse peito aberto, homem? E por que eu? [apontando mulheres da platéia] Aquela ali, ó! Parece tão... dona de si! E aquela uma lá? Fartura pra matar afogado! Mas não... tu qué eu! [apontando outras duas mulheres da platéia] Tu até pode brincar com Leonora... Tu até vai buscar Miranda, mas eu, Amaro... é em mim que tu semeia tu... [excitada] Bóra, vem! Onde é que vai ser, neste ano? Aquela árvore ali não vale mais... Quero fazê com tu fumando o teu cigarro, enfumaçando o amor, que nem o homem do cinema... Onde, homem, onde? Tem que ser agora, que o guarda já passou... e o sol tá a pino, lugar mais claro de luz não deve de existir nesse jardim de Deus-Nosso-Sinhô, Amaro... Ali!!!! Onde tá aquela pombinha branquinha com o raminho no bico... Quem chegar por último vai ter que beijá o fiofó do... [pausa repentina] Dá preu sabê o que é que a moça tá de cochicho aí? Cochicho rima com buchicho viu! O Amaro, meu marido, tá me esperando nesse lugar aqui, ó [mostra o bilhete]... O 47, já passou, já? Moço, me arrume um cigarro, pra eu chamá o bonde, é batata... [olhando fixo para um ponto] Mas que judiação é aquela, minha virge-nossa-senhora-da-santíssima-trindade-celestial-dos-último-dia-da-anunciação-divina??! Um corpo no meio do trilho? Que mundo é esse, minha gente, que esses bonde tão querendo o quê? Voar, é? Mas quem era ele? Alguém aqui conhece o sujeito ali, coitado... [se aproximando do corpo, ela empalidece e, aos poucos, liberta um grito de desespero. No fim do grito, recompõe-se não se reconhecendo naquela situação e vira-se para o moço da platéia] O moço tem um cigarro? É pra dar uma enfumaçada nos miolos e ver se alguma coisa aparece na cachola, sabe... Que diabo de lugar é esse aqui, mulher de deus... Aquela árvore ali, eu... eu acho que já vi aquela árvore ali, tinha uma... uma pomba... é! Tinha uma pomba com um raminho bem verdinho no bico, como num conto, numa história que um dia, sei lá quando, nem sei quem me contou...[cantando]hei, pombo, que é que deuo que sou eu / pouco importa pra mimsem início, nem fim / eu vou por aí...







ORAÇÃO DE UM PAU D´ÁGUA

CHEGANÇA
Botequim dos mais fuleiros. Um tonel de pinga e muitas garrafas. Uma imagem do Sagrado Coração cercado de cartazetes de cerveja com mulher gostosa e propagandas de cigarro vagabundo. Um balcão de alumínio. A presença do personagem Aragão, o botequineiro, é opcional. É necessário que haja a mão de alguém entrando em cena com um copo de pinga, um copo daqueles de Rabo de Galo. O Pau Dágua entra pela platéia, medindo os espectadores como se estes o estivessem aguardando...
Heróis! Isso é o que cada um de tu é, por terem chegado até aqui. Congratulações.
Pausa. Ele chega ao balcão, fuça demoradamente o fundo dos bolsos e pega umas moedinhas. Gesticula pra dentro do balcão pedindo um cigarro avulso. A mão traz o cigarro e pega uma moedinha. Ele procura e encontra uma caixa de fósforos vazia. Gesticula novamente, e a mão lhe trás um fósforo e leva outra moedinha. Ele demora um bocado pra conseguir acender o cigarro. Traga com volúpia e querendo parecer elegante, antes de se dirigir à platéia.
E chega de elogio, que hoje eu não to bom e quando eu não to bom eu fico pior ainda... Então prestem muita atenção, porque a aula é prática e eu não vou dar boi pra ninguém. Tão me entendendo?
O COPO
Faz sinal pedindo pinga ao botequineiro. Surge o copo. Ele o apanha para analisá-lo..Ah! Excelente qualidade. [a um espectador] Diz pra mim: onde é que está a prova de tanta qualidade, neste copo? Não sabe. Assim tu vai longe, viu! Olha aqui: tá vendo? Gordura de detergente barato! É isso que legitima o copo... [para o espectador] Dessa vez vou fazer vista-grossa porque tu é corinthiano, mas fica esperto. E silêncio, que isso aqui é local sagrado... [emposta-se]
A PINGA
A Aguardente! Não mais do que dois dedos finos, na medida, mas com qualidade que condecora uma boa aguardente! Besteira. Na parte verdadeira da minha terra o nome certo é pinga. PINGA. Pinga, isso sim é que é som nativo, de profunda brasilidade, que me faz respirar oxigênio do mais puro e botequineiro grau... Pinga! Com a marvada pinga é que eu me atrapaio, ali mesmo eu bebo e ali mesmo eu caio, só pra variá é que eu do trabáio, oiá! Isso cheira a música da boa, só quem bebe sente o que ela diz... Pois é... Cá estamos nós, nesse templo, humildemente diante deste Cálice! [a um espectador] Tá sentindo aí nas tuas costas? Não tá? Então faz um esforço e mergulha no teu DNA, vai... É o peso de 500 anos de brasilidade, meu pupilo, todinho nesse copo... As caravelas... A espada portuguesa nas coxas da indiazinha... O samba de criola... O rabo-de-arraia ao redor do berimbau... A lágrima na telha de coxa... A festança lambuzada atrás do salão requintado do baile europeu... O pandeiro e o cavaquinho nos cordões do carnaval... O sobe-desce pelas ladeiras do morro... Tá tudo aqui, tá sentindo? [para alguém que concorde] Muito bom, ponto positivo no teu prontuário! To mentindo, Aragão?! TRADIÇÃO, meus queridos... Tradição! Tudo tem um porque, besteira é ficar querendo inventar moda, coisa típica dessa modernidade herege.
O RITUAL
A aula de hoje é sobre RITUAL. É tudo ritual, é ritual, pô. [batendo a mão no balcão] Pinga! [pausa] Que olhar desconfiado é esse, Aragão?! Tá certíssimo. [tira uma moeda do bolso e bate ela no balcão] O Barqueiro não cobrava sua paga dos mortos dos antigos gregos? Justo. Lá vai o Aragão em direção às garrafas, arrastando o chinelão e sorrindo com o regão da bunda pra mim! [pausa solene] Manguaceiros e cachaceiros, Paus Dágua do meu Brasil Varonil, devotos de São Rizal, preparai-vos... Nossa viagem começa agora!
[posta-se com ambas as mãos sobre o balcão] O balcão! É aqui que eu me firmo diante de todas as forças do Boteco pra mosrar quem é que tá nesse remo do barco... Aí, Aragão! Essa aí não... vagabunda demais... Serve uma do barril, que a paga merece...
[o ator ou a mão enche o copo com pinga do barril e o coloca no balcão, diante do Pau Dágua, que sorri, em silêncio] À sua, Aragão! Dá um siricotico no corpo...
[pausa. Ele se olha demoradamente no reflexo do balcão] Olha eu, de novo, diante daquele trago, quando tinha 11 anos, com o meu velho fantasiado de Papai Noel... [ergue o copo num brinde ao Sagrado Coração] Tim-tim! Eita trago sem fim...!
[de olhos fechados ele se debruça sobre o cheiro da pinga. Enquanto isso, o ator ou a mão apanha o dinheiro e desaparece]
E tem gente que não aprecia esse parfum... É o cheiro o que mais importa. Estufa o miolo das idéias, acalma o corpo todo, abre a goela e atiça o estômago pro velho tim-tim... TIM-TIM! Tu sabe disso, né, Aragão?! Deus t´abençô, meu pagé!
[a um espectador] Que mistérios a vida esconde debaixo das pedras mais comuns do passeio? [pausa estudada] Anotou? Não vai esquecer depois, hein... Vamos em frente. Hora de respirar profundamente o parfum da Pinga... Os olhos do Aragão fingem olhar pra essas bundas maravilhosas aí [cartazes de cerveja]... Mas isso é um código secreto desse Bruxo... que tudo vê atrás da porta fechada! Que sabe mais do que ninguém que o Noel nunca vai ficar na mão! Sabe, sim...
[Uma mosca voa sobre ele e, gesticulando uma ordem de “silêncio” para a platéia, ele acompanha atentamente o vôo até que a mosca pousa. Sussurrando]
Tu são mesmo uns felizardos...! Olha só onde essa mosca foi pousar! No bigode do Aragão, só podia ser! É o Animal de Poder dele... E tá querendo nos dizer alguma coisa, ô se tá! Mas o que será, Minha Nossa Senhora do Santíssimo Trago?!
[reflete, ansioso. A mosca sai voando até desparecer. Por fim dá um tapa na própria testa] Besta! Só depois que eu atravessar o portal é que eu vou compreender o mistério!Silencia e observa atentamente a marca de suor deixada sobre o local. Então dirige a palavra a algum espectador.
Mostra-me o suor da tua mão e eu te direi quem és! Se eu não conseguir, o Aragão consegue, treinado como tá em fugir de fiado e da vigilância sanitária... Olhando pra essa marca da minha mão eu vejo claramente... que... bem... a Isaurinha, aquela vaca... ela não devia... não podia... não precisava ter se dado.. tão fácil... pro meu... pro...
[pausa. Ele se recompõe] O que é que cês tão olhando... vamos em frente! Próxima lição: a PINÇA. Pegue o seu dedo indicador e seu dedo polegar e, com extrema delicadeza e respeito, toque o “cálice”. Só os verdadeiros Iniciados sabem dar valor a esta óstia consagrada... Momento bom pra mané enfiar a mão pelos pés, tropeçar e dar com as fuças na lama do barranco do Caminho! É falta de HUMILDADE! É aí que o Capeta goza! Tu quer fazer o gol sem agradecer o técnico? Vai dançar feio, com certeza! Depois não adianta chorar as mágoas, pedir perdão nem se humilhar... Inês é morta! É código de honra, sem chance. Vai pastar capim seco e güentá ressaca braba caído no meio-fio, até amanhecer mijado por dentro e por fora. Não deu o gole pro Santo? Expurgo Imediato do 3º Grau! O Santo tira o gole dele por todos os teus buracos e ainda manda um cão bem sarnento pra te benzer, pecador. É a LEI. Então presta bem atenção. Ergo minha mão direita. Dedos em pinça. Suspendo o “cálice”. E dou um gole a meu Jorge Guerreiro, meu protetor, para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam, tenham pernas e não me alcancem e para que meu filho nunca me veja encontrando bala perdida em noite de Natal! [pausa] Pronto. Pelo gemido do dragão, o bom Jorjão aceitou minha oferenda. Agora vem a hora mais sagrada. É tão séria, mas tão séria mesmo, que o boteco, nesse instante, respira numa única pulsação. É a hora de OLHAR ATRAVÉS DA PINGA! É aqui que, às vezes, até o iniciado mais graduado chama Jesus de Genésio e pede arrego até pro Santo do Pau Oco. Eu sei o que eu to dizendo, tenho quase três década nesse ritual. tu acham que o Aragão se recolhe lá no mictório, o santuário dele, só pra mijar aos picados por causa da próstata ou pra escarrar ou pra buzinar esses peidões? Vão nessa! São os mistérios do botequim... [confidente] É tudo mensagem cifrada que vem pelo bilau, pela goela ou pelo fiofó do médium! [escarrada do Aragão] Escutaram? Aviso pra eu tomar cuidado com o atraso na pensão dos moleques... [peidão] Viu?! Mandou eu jogar 20 mangos no Elefante... Mas ó: a hora é de olhar através da Pinga! Se negar a fazer isso seria como morrer na praia, amarelar total, sujar fora do pinico. Eu é que não! [ergue o copo até a altura dos olhos] Mentalizo a cor dourada... e mergulho o olhar na Pinga... [respira profundamente, aguça o olhar enquanto, com a mão direita, balança suavemente o copo] Conexão realizada! Surgem formas... e... eu vejo um campo de futebol e... eu vejo um menino... correndo... eu vejo... o tempo... correndo ao redor do caminho daquele menino... e uma menina... e o Papai Noel sentado na linha do gol... o menino ama a menina... e o Papai Noel acena para os dois... o menino tropeça, cai e, enquanto se levanta, vê a menina chegar ao gol e pular no colo do Bom Velhinho... que rasga seu vestido e planta um buquê de rosas vermelhas entre as coxas cor-de-rosa da menina... que sorri... para Noel... que se vai... [afasta repentinamente o olhar do copo de pinga e permanece em silêncio] Eita, pau! Quem disse que o tranco é mole ou que o babado é doce? Carece treino e muita coragem, essa bolinha de cristal... [som de descarga da privada] Deus te pague, Aragão! É isso aí, meu guru... É simples, quando se sabe como... Deixa quieto, que o que foi, ido tá. Bóra encarar o futuro, que no buteco nem só a Deus pertence... [se concentra e repete o ritual de olhar através da pinga] Conexão! Formas... Eu vejo... um galo... preto carvão... empoleirado numa gaiola de aço enferrujado... sozinho... ciscando farelo mofado... bebendo caldo fermentado de cana azeda... cor de baba... Eu vejo uma forquilha e... o galo brinca de quebrar seu pescoço nela... e o pescoço tá em pele viva...
[pausa. Ele se afasta do copo e balança furiosamente a cabeça, pra afugentar a visão. Então imediatamente volta-se para o público] Quem foi? Isso é muito grave, pode dar reprovação ou até mesmo expulsão. QUEM FOI? Querem me fazer o favor de vigiar o pensamento? Não vem com essa pra cima de mim, não, que meu futuro eu sei que é bem outro, tão sabendo? Eu jogo minhas mãos pro céu e agradeço por ter alguém que eu gostaria que esteja sempre comigo, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê, tá falado? Então sai pra lá com a inveja, seus despreparado, bando de amador do cacete! Bobeia de novo e eu desço o carimbão vermelho no prontuário do vacilão! E aí vão tudo beber zulu escondido da esposa no banheiro ou, pior, levar insulina na veia em PS do INSS! Tamo conversado? Posso continuar? É bão. Orai e vigiai, aí.Pausa. Ele se recompõe solenemente.Dedos em pinça. Suavidade ao tocar o “cálice sagrado”. Pinga na altura do terceiro olho [ele desvia o olhar de dentro do copo]. Levar a borda do copo até o lábio... ATENÇÃO! Não cometam a sandice de engulir a pinga, ainda... seria jogar todo o caminho trilhado na latrina... Não! A hora é de íntima evocação... Um bom PAU DÁGUA sabe que o significado que tem o íntimo contato da ponta da sua língua com a boca do sagrado cálice... É o... o... o... beijo de extrema pureza na... na.. na... na vulva amada! Requer entrega, paz, carinho, intimidade e... alegria! É um ato de Fé, um ato de Amor! Então, pela espada de Jorge, nem me vem rodopiando o linguão na boca do copo! Isso é pornográfico! Fala aí, Aragão, das três ou quatro vezes que tu soltou o Ximbiu atrás daqueles indecentes! Inda mais aquele sarnento, que é doido por um osso vivo... Tem que ter delicadeza, meus queridos... respeito... it!
[pausa]
Finalmente chegamos à parte final da nossa aula: o Momento Sagrado do Encontro! A grande conexão! A decolagem! O repatriamento do exilado! O fim do estado-de-sítio! Não se abre uma porta sem virar a chave antes... E não se vira a chave aos pouquinhos, certo? Tem que ter atitude, firmeza, desejo! Não dá pra fingir, fazer de conta... Se tu não tá me entendendo é porque pegou o bonde errado, tá de otário nessa faixa vibratória, que, aqui, a pomba gira mas não despenca. To falando da Hora H! Vamos lá:dedos em pinça no cálice beijado! Não dá pra ser de bocadinho, não, tem que cair de boca, tem que ser tudo e tudo ao mesmo tempo! A goela sabe bem o que ela quer, tá arreganhada e molhadinha, pedindo, feliz da vida... É hora de virar o copo! Respire fundo e feche a cortina dos olhos, porque agora é tu com as tuas bolhas de sabão... teus jingo-béus... tuas meninas correndo...
[vira o copo goela abaixo. Pausa. Olha o copo vazio, chacoalha o corpo todo e bate com o copo vazio no alumínio do balcão]
Que é que tu tá rindo aí, Aragão, seu safado? [se retirando, cambaleante] Ele sabe... o pior de tudo é que o Aragão sabe de tudo... [para o público] Heróis é o que tu são...
[ele sai pela platéia, luz cai]

O EPITÁFIO

MONÓLOGO

É incrível, penso eu, como, hoje em dia, fala-se mais do holocausto judeu, acontecido há tantas e tantas décadas, do que sobre os ANOS DE CHUMBO, que o Brasil viveu de ´64 pra cá... Então, quem sabe isso não contribui um bocadinho pra gente lembrar que aquilo não deve se repetir nunca?

[O personagem mistura-se o público e entra juntamente com ele. É um desses velhos que trabalham como “homens-sanduíches” no Centro da cidade. Está vestido com seu instrumento de trabalho, mais uma vassoura e uma maleta com cacarecos pessoais. Uma vez a platéia acomodada ele começa a trocar idéias com a pessoa mais próxima. O formato ideal de platéia, para este monólogo é disposta em roda]

Puxa vida, como isto aqui está concorrido, hoje. A Ala 8 tá borbulhando de gente, também. É dia de festa, é? E ninguém me convidou, para variar um pouco? Ou será que, pra variar, eu me atrasei de novo? [para a pessoa ao lado] Boa noite, muito prazer, meu nome é Adolfo. É, Adolfo. Nem te conto quem foi o alemão que o meu pai resolveu homenagear colocando em mim o nome dele, viu... Deixa pra lá. Embora, às vezes, a gente precise agir com certa força pra botar as rodas nos trilhos, como deve ser... [pausa]

Pois é, a verdade é que eu realmente tenho esse hábito, vira-e-mexe eu me atraso. Quer dizer, nem sei se sou eu que me atraso ou se, hoje em dia, é o tempo que já é outro... Pode ser, não pode? Então. A gente perde o pé do bailado, por causa... ah, por um monte de motivo, nem sei. O ritmo é outro... os acordes da orquestra já não casam tanto com a batuta do coração... a dama já não é mais a mesma... [pausa]

Mas que bom que não estou sozinho, hoje, que bom. Outro dia, deus do céu, nem te conto. Conto, sim, porque, com tanta gente hoje aqui, vai ser difícil tirar um cochilo, não vai? Então, enquanto isso, o bom é prosear, não é? Aliás, moço, “é enquanto isso que, na vida, tudo acontece”! Escreveu, anotou? Bonito, né? Eu adoro criar ditado... dá uma sensação de... de... de posteridade, não dá? Outro ditado que eu criei é esse aqui, anota aí, porque é sábio: “Nem tudo que o direito pergunta o de fato responde”. Gostou? Ditado e epitáfio também! O meu eu já fiz, tá escrito, guardadinho no saco da praça. É assim, olha: “A todos vocês, muito obrigado e até a próxima, se Deus quiser!”. Hein!? Não é o máximo? Conta o filme e ainda deixa gancho pruma “parte 2”, não deixa? [pausa]

Mas eu ia dizendo que nem te conto. Olha, é bem provável que a gente já tenha se trombado por aí, viu. Eu trabalho ali no calçadão, sabe, logo ali, atrás do caixa eletrônico, virando a esquina, meu ponto fica entre o do pastor e o do mágico. Sabe aquele pastor, o que já viu o Pai, tirou braço-de-ferro com o Filho e dorme na cama do Espírito Santo? Então, ele mesmo, o baixinho de bigodinho fino e terno cor de... de... que cor é aquela, meu Deus do céu? Faz tanto tempo que ele usa aquele terno que eu já nem sei mais que cor o sol, a chuva e o vento deu àquele paletó... Bom, não importa. Eu fico ali, entre ele e o Mister Lord, o vendedor de mágicas. Que supimpa, aquele moço, tão fino, tão fora de esquadro, tão... dono de mistério. Como eu gosto disso, moço, de mistério! Hoje em dia o mundo tá travando a última batalha, tá prestes a vencer de vez o mistério, porque hoje em dia tá tudo tão explicadinho nas revistas da banca de jornal, não tá? Nos Anos 70, não... lá onde eu trabalhava, a gente atravessava as madrugadas cruzando a corda-bamba do mistério... era a morte dum lado e a vida do outro... [pausa]

Eu que não me entrego! Tem noite que eu fico por ali mesmo, no calçadão, sabe? E, se eu conto, ninguém acredita que o Caixa Eletrônico conversa comigo. To falando pro moço porque tá na cara que o moço é letrado, se veste bem, tem uma aura... Com o povo eu nem perco tempo porque ele não vai entender. Mas aqui é um lugar especial, por isso é que eu gosto tanto de vir aqui, mesmo sabendo que vai chegar o dia em que vão fechar a porteira e quem tá aqui dentro, lá pra fora não vai mais. O Caixa Eletrônico conversa muito comigo, todo mundo tem muito pra trocar um com o outro, não tem? O Caixa, coitado, ele vive em depressão. Não tem coisa no mundo pior que depressão... é coisa séria. Tem noite que eu compro uma cachacinha boa, uns amendoim e vou passar a noite com ele. É agradável, quentinho ali dentro. E então ele desabafa pra valer... chora muito. Eu ouço o tilintar das lágrimas dele caindo no chão, lá do outro lado. Ele se sente muito usado, diz que as pessoas só procuram ele por interesse, que elas nunca vêm sem terceiras intenções, pruma relação de amigo, sabe? Porque amigo vem pra trocar, não pra usar, usar, usar e usar, não é, moço? O Caixa Eletrônico e eu, tem noite que a gente fica ali, só no silêncio, eu ele, na intimidade e eu sinto que ele gosta de mim, sim. Não tenho vergonha de falar, não. Tem gente que consegue isso com o cachorro ou com a namorada ou com um filho ou até com um amigo, não tem? É assim comigo e o Caixa Eletrônico... eu gosto muito dele, das cores dele... outro dia, passei uma agüinha no coitado, que tava fedendo a dinheiro e isso ninguém merece... [pausa]

São os mistério da vida, né, moço? Quem vai explicar? Pior: quem vai conseguir provar provadinho, ali, preto-no-branco, que esse mistério não existe? Pois então, é por essas e outras que eu me sinto muito honrado de dividir o calçadão com o Mister Lord. Nome importante, em inglês, coisa chique pra ninguém botar defeito. Outro dia, descobri que o nome dele é Benedito dos Santos Silva e Souza Filho... Agora me fala, moço, se ele não tem razão? Isso lá é nome de mágico? Benedito? Ele me contou que, quando ele começou a animar festinhas de aniversário de criancinha, ele se apresentava como Benny Diet, mas o povo chamava ele ou de Mister ou de Lord, por isso ele deixou assim. [pausa]

Eu fico ali no meu ponto um tempo sem fim, porque, como eu já disse, meu tempo passa diferente desse tempo de hoje em dia. Então eu fico ali, plantado, com uma orelha grudada no Apocalipse do pastor e um olho fincado no Ás de Paus, nas moedinhas que o Mister tira da orelha das pessoas. Que bênção é ver os olhos de quem passa na mão dele! É diferente dos berros do pastor, que embaça os olhos de tudo mundo. É tanto enxofre pra todo lado, que a gente sai dali fedido que só a penga. Ainda mais eu, coitado de mim, que fico ali, do lado dele, catorze ou até dezesseis horas todo dia, de segunda a sábado, sem férias nem décimo-terceiro. Como diz o Getulinho, meu mais velho, “Deus é mãe, não é madrasta!”. E eu tenho o bruxo do Mister, ali do meu lado, mostrando que o Céu também existe. Queria tanto que o Caixa Eletrônico conhecesse o Mister, de noite... Mas o Mister trabalha de madrugada em coisa de telemarketing, sabe? [pausa]

Mas o trabalho meu é bom, não é ruim, não. Tem que trabalhar, não tem? Então. Eu faço a minha parte, ali. Tenho que ficar de pé, sim, porque, senão, ninguém me vê e, aí, coitado da patroa... [pausa]

Pois é... Mas me diz, moço, que horas tem aí? [...] Mas já? Cruz-credo. O tempo é uma coisa de louco... e louco sou eu, que corro atrás dele. Faz tempo que vocês chegaram? Olha, aqui é muito bom pra relaxar, viu. Pensar na vida... Pras bandas das alas 7, 8 e 9 a coisa tá um pouco complicada. Gente revoltada, que vem lavar as mágoas por aqui, no lugar de aproveitar, largar os fardo e respirar esse silencião todo, esse ar fresquinho, não é? O lado de cá é bom demais. Eu vira-e-mexe, sempre que eu posso, eu venho pra cá. Se bem que, nesta noite, eu... [pausa]

Não sei... não foi igual sempre é. Eu vim pra cá, depois que saí lá do calçadão... Mas vim sentindo um troço estranho aqui na nuca, além de... sabe... uma saudade de sei lá o que... [pausa] É. Não sei... [pausa]

O moço vem sempre aqui, vem? [...] O que é que o moço faz da vida, hein? O moço vive a vida? [...] Por que veio pra cá, hein? Aliás, essa pergunta todo mundo se faz, não é? De onde vim? Pra onde vou? Por que eu existo? O povo fala: “penso, logo existo”! Eu, hein. Tem tanta gente pensando tanta besteira. Cá entre nós, se for assim, coitada da bicharada, das plantas e das pedras, do céu e do mar, não é mesmo? Numa dessas noitadas com o Caixa Eletrônico, acabou surgindo isso aqui, olha só:

[cantando]

Eu lá sei o que eu sou
Eu já sou o que eu já sei
Sigo andando pronde eu vou
Pronde eu vou é o que eu serei
Aquilo que eu ainda não sou
Mas eu já sou o que eu já sei
E já sei o que eu já sou
[pausa]

A letra é minha. A música é do Caixa Eletrônico. É uma longa história, mesmo... [pausa]

Mas, pois é. Eu estava lá no calçadão, nessa última madrugada, porque eu moro longe e, às vezes, pra falar a verdade, é preguiça mesmo o que me dá de ir até lá em casa, só pra tirar um cochilo e logo depois já ter que voltar. Despesa nem tem por conta da minha idade. E bem que dá prum cochilo e tanto na viagem de ida e também na volta. Mas é preguiça mesmo. E o Saravá não tá mais lá, não tenho ninguém em casa me esperando, nem pra comer, nem pra abanar rabinho, nem pra esquentar os pés na cama. Não gosto nem de falar nisso, viu, moço. Tinha vez, quando era turno do Tião, que ele me deixava trazer o Saravá no busão até aqui e eu amarrava ele num poste perto do meu ponto e ele ficava ali, quietinho, vez ou outra lambendo as pernas das meninas gostosas que passavam pertinho dele, uma farra. Nem era velho, morreu de birra, porque eu não trouxe ele comigo nos últimos tempos, isso sim. [pausa]

O melhor é mudar de prosa. [...] Então, terminado meu serviço, eu fico pela cidade mesmo, olhando as vitrines, proseando com o povo de rua... E pelo menos três vezes por semana o dono da loja de roupa feminina me pega prum servicinho. Eu fico vigiando a porta da loja dele, pra vagabundo não dormir na frente, sabe? O dono daquela loja não gosta disso, porque ele acha que isso não combina com a loja dele. Então ele me paga 5 reais pra eu vigiar a porta dele. Isso é uma bênção, engorda as minhas rendas. Eu me sinto muito honrado, mesmo sendo difícil o dia seguinte, pra trabalhar no meu ponto, entre o mágico e o pastor. Mas eu dou conta, porque sou homem trabalhador, que o trabalho dinifica o homem. Então. [pausa]

Engraçado é que o dia de hoje eu não consigo me lembrar como é que foi, isso é muito estranho porque eu posso tá velho, mas gagá é que eu não tou. Sou daquele que te conta tudo, tanto tim-tim-por-tim-tim de quando fazia faxina nos porão da ditadura militar — época que só não foi mais feliz porque eu tava casado com a baleia da Olga — como detalhe-por-detalhe do que fiz ontem e anteontem. Será que os miolo tão fraquejando, moço? Posso não, sou só eu pra contar comigo. E olhe lá. Então que diabo é esse esquecimento, agora? [pausa] Ah, mas da madrugada eu me lembro, sim... O Coceira! É, isso mesmo, eu tive que dar um jeito no Coceira, na madrugada passada. O vagabundo levou a pomba-velha pra furunfunfá bem na porta da minha loja, foi isso! Nossa, graças a Deus. Acho horrível não esquecer as coisas. Foi isso, sim. Eu me enchi da autoridade que o doutô me deu e falei pro desgraçado: “Aí, Coceira, cê vai me desculpar, mas não vai dar pra tu e essa cruza de deus-me-livre com cruz-credo ficar aí na porta da loja, não!”. Quer dizer, eu fui curto, grosso e objetivo, não fui? Porque não tem muito trololó com essa gentalha, não. Tem que ser direto. E eu me lembro que eu tava muito irritado, mesmo. Porque o Coceira é desses que fingem ser surdos, sabe, moço? Eu posso ser bronco, moço, mas tem umas coisas que a Vida me fez engolir goela abaixo e que até hoje não teve jeito de um cagar pra fora. E uma delas é saber que o melhor jeito da gente acabar com a pessoa do outro é a gente fingir que ele não existe ou, pior, tratar ele como louco. E isso me tira do sério! Isso não existe, moço. Essa bola é redonda, tá todo mundo em campo, não tem reserva nesse jogo. Tá todo mundo respirando o mesmo ar, sentindo o mesmo frio, fedendo do mesmo jeito, porque perfume se compra, mas suór e peido é o retrato da Verdade. O fio-dum-cão nem se mexeu, acredita? Com um risinho de enlouquecer estátua ele se empirulitou pra cima da Pomba-Véia, uma mijona que tem só dois dentes na boca, e entrou nela como se eu nem estivesse ali, uma desavergonhice sem fim, ali debaixo das estrelas e da lua, que é o olho da Nossa Senhora dos Aflitos. Se eu parto pra porrada, onde é que fica a minha autoridade dada pelo dono da loja que me paga pra vigiar seu patrimônio? Insisti na diplomacia: “Aí, Coceira. Não atravanca a minha labuta, vai. Vai comer ela ali, na porta da Lotérica, que é lugar de jogo de sorte e azar...”. Mas, sabe, moço, tem gente que nasceu mesmo pra despertar o Cão na gente. E sem dizer um a. O Coceira é um desses. A Pomba-Véia eu nem falo, porque essa já perdeu o juízo há anos, passa de pinto em pinto todo dia e toda noite, ali nas quebradas da praça, e nem sente mais. A única coisa que faz a gente ver que tem ainda um fiapo de gente ali dentro é que ela passa suas horas, em qualquer situação, cantarolando, baixinho, sem parar:

[cantando]
O Anel que tu me destes
Flor, vem cá
Era vidro e se quebrou
Laialaiá-laiá

Só esse trechinho, é tudo que sai da boca dela, quando ele abre. Mas o Coceira, esse não. É cabra safado, raposão. Sabe ainda muito bem onde está, quem é e a que veio. Então. Sabe, moço, aquele momento que a ira se espreguiça aqui no meio das tripas e aí vai subindo pras cabeças, feito uma louca babando? Então. Me fala: e se o doutô resolve sair da cama dele e vir saber do meu serviço àquela hora da madrugada, hein? Como é que fica a minha moral? E o pior: onde é que vai parar os meus 5 paus? E tudo por causa do bosta do Coceira? Não, nem a pau. Esse dinheiro eu preciso. Metade eu planto no saco da praça e a outra metade eu compro meu sossego com a Olga, que, pé-de-pato-mangaló-treis-veiz, é a última coisa do mundo que pode me aparecer nessa minha altura do campeonato. [pausa]

Eu puxei o fôlego todo, agarrei o Coceira pela gola daquela camiseta com o merda do Guevara me olhando, e puxei ele num só golpe, com toda a energia dos meus 72 anos! E não é que o fedelho, com aquele olho de peixe morto e aquele sorrisinho besta na boca, nem sequer saiu do lugar? Minha santíssima Nossa Senhora dos Aflitos, que é de mim se o doutô me pega num fraquejo desse? Fico sem meus 5 paus e ele ainda pode comentar com a dona Laurinda, minha patroa da loja de ouro, pra quem eu trabalho durante o dia. Se isso acontece, fudeu o zebedeu! Que é que eu faço? Volto pra cama da Olga? Nem morto. Limite é coisa que, hora mais, hora menos, qualquer vivente põe na mesa, pros seus diabos ficarem espertos. Perco essas rendas e é batata que vai chegar a hora que vou ter que fuçar no saco lá da praça e aí, Deus me livre, credo-em-cruz! Sei lá que vai ser de mim quando eu esticar as canelas de vez. Quem é que vai pagar minha decência na hora que a minha carcaça tiver que descer pra barriga desse mundo, hein? Não, não, não, coisa nenhuma! Aquele dinheiro tem que ficar enterrado lá, na praça, é sagrado, prum fim nobre. Não vai ser um bosta dum cheirador-de-cola, dum vagabundo que nem lembra do próprio nome, que vai agora me tirar o pouco que me sobrou, não tou certo, moço? Não comigo. Tudo tem limite. O Coceira tem aquele olho de quem não tá olhando, sabe? E o risinho do Decaído, que nem o da Olga, debochada dos infernos, aquela bacia de mau-humor. [pausa]

Ah, o que não faz a falta de juízo do pinto! Eu sei que é pecado pensar assim, que anjo é anjo, mas ninguém me tira da cabeça que o Getulinho, na verdade, foi embocada daquela rinoceronta, ah, se foi. Porque o moço sabe como são as coisas, não sabe? Homem que é homem tem suas necessidades. A gente deixou de ser feliz quando a mulher deixou de ser fêmea, isso é que foi. Então. A gente cai nas armadilhas da própria fogueira. Fui lá me engraçar com a fartura daquela mulher e de brinde ganhei quatro irmão mais velho me espremendo na parede dum altar feito às pressas lá no Interior. Quando acordei do susto, tava enjaulado. E o pior é que a graça da Olga sumiu de vez, ele nunca mais foi a mesma de antes, nas nossas trepadinhas debaixo da jabuticabeira do quintal da casa dela e dos irmãos. Cheirava mal, era bronca em cima de bronca, não tem homem que agüente. Ainda bem que eu tinha os presos político pra desopilar meu fígado, porque ninguém é de ferro pra suportar uma mulher que mais gostava era de limpar os pés em mim, não conseguia me ver sossegado, lendo um jornal ou ouvindo a Voz do Brasil, porque patriota é coisa que não tem democracia que me faça deixar de ser, viu, moço? Eu caprichava o serviço lá nos porão do Dops, fazendo faxina pesada, ajudando os agentes a botar moral nos comunistas, era mais pra deixar o corpo bem cansadão mesmo, porque eu só tinha paz, só conseguia ficar feliz era quando o sono me levava embora, lá pros campos em que eu cresci, descendo colina dentro de pneu de caminhão, disputando rolemã, correndo atrás da Lurdinha, que, besta, foi viver com um coronel lá no Chile e acabou sendo pinochetada quando a esposa dele descobriu e resolveu colocar todos os pingos nos is. Eu dormia pra ser eu mesmo, de novo. Mas não é que a baleia nem no sono me deixava em paz? Roncava feito uma porca velha, e peidava tudo o que tinha de direito e, ainda por cima, dormia chupando os dentes. Teve um tempo que eu reclamava, cheguei até a tentar sufocar ela com o travesseiro, mas ela me mandou uma joelhada no saco, sem nem sequer parar de roncar. E, ainda por cima, se espalhava na cama, me espremendo contra a parede. Nem o direito de dormir no chão ela me dava, porque o ciúme dela inventava que eu saía de noite pra fazer a farra na vizinhança, então tinha que dormir ali, do lado dela, espremido, sem posição, com câimbra no corpo todo e até falta de ar. No dia seguinte, eu com olheiras até o pescoço e ela com aquele sorrisinho besta na boca bigoduda... [pausa]

Igualzinho a essedo Coceira! Um risinho que te anula, que te reduz a um átomo da tripa de um verme da bosta líquida do cavalo manco do estuprador da freira paralítica, sabe? Então. Ah, não, todo mundo sabe que patrão gosta de vigiar o emprego do seu dinheiro. O doutô que não ia me perdoar se visse o Coceira e a Pomba-Véia enganchados ali, na porta do estabelecimento fino dele. Eu não tinha porque agüentar aquilo, moço. Você concorda? A Olga eu suportei durante 27 anos, afinal de contas, sabe como é... um homem que é homem tem lá as suas necessidades, não tem? De bobeada em bobeada, hoje eu também tenho a Castelinho, o Costinha, o Emilinho, o Ernestinho e o Joãozinho, isso porque a Margareth não vingou, a pobrezinha. Mas o puto do Coceira nem meu filho, amigo, parente ou conhecido ele é. Vou lá perder minha carta de alforria com a Olga e a dignidade da minha carcaça depois de morto por conta desse marginal? Ah, moço, só tinha um jeito de acabar com aquele drama, viu. Eu precisava agir. Afundei as minhas garras na cabeleira do Coceira e na cabeleira da Pomba-Véia e agüentei firme o ataque furioso das pulgas e dos piolhos, o que não foi missão nem um pouco tranqüila. Cansei de fazer isso com preso político que, na hora de eu limpar a cela, cismava em ficar cantando a Internacional Socialista e fazendo discurso pra boi dormir. Dessa vez deu certo, moço. Nada como a prática, não é? Arrastei os dois calçadão afora, e nem assim a Pomba-Véia, cantando a musiquinha dela, largou o pinto do Coceira! Se o moço me perguntar, fico devendo a resposta, porque não faço idéia de onde é que me veio a força pra arrastar aqueles dois enganchados. Fui indo e deixando um rastro de melequeira dos dois pelo caminho, até largar os dois e toda a tralha imunda deles na porta da lanchonete do miserável do Donato, lazarente, fio-dum-cão, que Deus e Nossa Senhora dos Aflitos hão de ser justo pra encher de formiga a boca desse sujeito antes de darem um pé bem no meio do trazeiro banhudo dele e mandar ele sem escala pro último chão dos infernos. Não, moço. Cá entre nós. Não querer dar pra gente as sobras do dia que vão acabar no lixo, eu até entendo, eu até concordo, porque negócio é negócio, certo? Quem não tem dinheiro que não tenha fome, uai. Eu no lugar dele, jogava na privada, porque no lixo tá assim de vagabundo envergonhando a raça, fuçando, comendo, um ultraje ao bom-gosto das boas famílias que pagam imposto e tudo o mais. Jogava na privada, porque aí, pelo menos, eu seria bom cristão colaborando com a obra do Celestial, dando comidinha pros peixinhos dos rios, do mar... A vida é assim, meu amigo. Uns tem, outros não têm. Se todo mundo tiver, não vai ter pra ninguém. É o mundo, moço. Cada vivo que jogue o jogo do lado que o mundo pôs. Eu não trabalho o dia inteiro e ainda faço minhas rendas de madrugada? E eu tenho 72 anos. Tudo isso é justo, justíssimo. Mas, Virginossa Senhora, coisa que eu não admito, de jeito nenhum, é crueldade. Não tem desculpa, porque Deus-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo-Salvador tá vendo tudo e ai-ai-ai desse joio todo na hora do Juízo Final. Seu moço, olha bem. Nunca, de forma alguma, jamais, em tempo algum nenhum vivente tem o direito de trancar um banheiro! Isso é um absurdo, não se faz, é demonice de baixíssimo calão! Onde é que já se viu? Eu sou um eleito, batizado, crismado e temente. Não se pode impedir um filho de Deus de despachar decentemente os seus restos pros cafundós do mundo. Isso é um direito constitucional, não é, moço? Se não é, devia de ser: todo homem tem o direito de ser livre, de cagar e de mijar em paz e decentemente. Pois aquele gordo miserento já não me obrigou, três ou quatro vezes, a ter que me moquifar acocorado atrás da banca ou nas moitas da praça? Um horror todo o povo compartilhando tanta intimidade minha, que é os meus fedores! Como é que o moço ia se sentir, se tivesse no meu lugar? E o pior: sem papel higiênico, do fofinho, branquinho, que rala-cú nem pros presos eu dava. Correndo o risco de ficar fedido no trabalho e acabar espantando a freguesia da dona Laurinda, porque ouro e cheiro de merda são coisa que não rima, não é? [pausa]

Então, foi sem dó nem piedade que eu tasquei o coito do Coceira e da Pomba-Véia ali na frente da lanchonete do Donato, até mesmo porque eu sei que, depois da farra, esses dois bem que iam puxar um ronco até o sol forte ou a guarda municipal vir varrer os dois dali. Dei uma boa varrida na frente da loja do doutô, que uma vez, por conta disso, ele não me deu uma nota de 2 reais a mais? [pausa] Pois é, moço, disso tudo eu me lembro bem, sim... foi nessa madrugada, como é que eu não ia me lembrar? Mas que diabo tá acontecendo com essa minha cabeça, que não me lembro de nada depois que acabei de lavar a frente da loja de roupa feminina? Eu sei que eu tava passando a vassoura, cantando

[cantando]
Quando eu estou aqui
Vivendo esse momento lindo
Olhando pra você
E as mesmas emoções sentindo
São tantas já vividas
São momentos que eu não me esqueci

Eu lembro que me deu uma vontade louca de contar tudo pro caixa eletrônico, mas eu vi que ele não estava num bom momento, que tinha um rapaz muito bem vestido sendo socado e levado de carro por dois moleques ali, na frente dele... Gente espalhafatosa, dando tiro pro céu, um perigo, hoje em dia o que mais se encontra é bala perdida... Eu lembro que me veio a voz da Olga falando que nem uma catraia entupida que o Joãozinho queria entrar num curso de Inglês, porque Brasil não é país que gente de bem consiga viver... E nisso eu sou obrigado a reconhecer que a putana tem razão, porque eita povinho sem graça, viu! Quem nos dera termos sido colonizados pra sempre pela Inglaterra, ao invés dos portugas... hoje seríamos uma nação poderosa, republicana, espalhada pelo mundo inteiro... O Joãozinho tem a quem puxar! [pausa]

De tudo isso, eu me lembro bem... Eu estava um pouco assonado, também, precisava tirar um cochilo antes do próximo trabalho... Resolvi relaxar e não tem lugar melhor que esse aqui, pra isso, não acha, moço? Eu vira-e-mexe faço isso, venho dormir um pouco aqui, principalmente ali, na ala 8, que tem umas tumbas bem protegidas do vento... Mas eu já fui lá e a concorrência tá maior do que a dessa ala, aqui... E ainda tem essa dorzinha que não me larga, bem aqui, no pé da nuca...

[leva a mão lá e tira uma bala perdida] Ihhh... não tou gostando nada disso...

biaggiolic@yahoo.com.br


UM MINUTO SÓ

MONÓLOGO

Personagem
Uma mulher, no parapeito de sua janela...

Ela — Eu não acredito. Você não está pensando em... [pausa] Espera um pouco. Isso vai ficar assim? Nesse pé? E tudo bem? [motor de moto] Eu não acredito. Isso é tudo o que você tem pra me dizer? Quer dizer, dessa vez é certeza mesmo? É? E desde quando você passou a ter certeza de alguma coisa nessa tua vida, posso saber? [acelerada] Calma. É só maneira de falar, não leva a sério. A gente não precisa levar tudo a ferro e fogo, precisa? Não precisa. Eu só queria saber se, nessa tua certeza toda, não existe alguma brechinha, despercebida, por onde eu possa tentar reverter a parada... tem? [acelerada] Ei, ei. Tudo bem. A gente pode se entender de uma outra forma, então. Sobe um pouco, a gente conversa. Ou melhor, a gente conversa enquanto eu preparo aquele bife acebolado que empesteia toda a quitinete, enquanto você toma um banho, pode até ser demorado, tudo bem, dinheiro não é tudo, tem que servir pra momentos felizes também, não é? Claro. Eu peço pro moleque da vizinha dar um pulo na mercearia e trazer a tal hortelã, faço um chá sem açúcar, que tal? Sobe, vai... Pára de empestear a camada de ozônio, desliga essa moto e vamos acertar os ponteiros. É um minuto só, não vale a pena? [motor silencia] Um minutinho só. Parece pouco mas é tanto, tanto. “Cada minuto é um ano inteiro quando cada segundo é um dia todo”, lembra? Nem todas as tuas filosofices eu deixei escapar... [ri, nervosa] E, também... Ah, daquele dia no açude da chácara não dá pra esquecer nunca mais, né... Se você tivesse feito o serviço mais vezes daquele jeito, ah, eu ia lembrar com saudade até do teu ronco, do teu bafo, dos teus pei... [acelerada] Que é isso? Pelo amor de Deus, não se pode mais abrir o coração nesse mundo? Desliga isso, vai, sobe aqui, me dá esse minuto. [acelerada] Então não. Me empresta esse minuto, me empresta esse tempo e eu te devolvo ele com juros, quer dizer, com muitas, muitas e muitas juras, que são todas as que eu nunca fiz mas sempre guardei aqui dentro com medo de me mostrar pra ti e você não dar a mínima pelota pra elas. [acelerada] Tá vendo? Dá uma espiada aí nesse retrovisor e vê se se enxerga um pouco. Eu, aqui, me abrindo em pétalas. O que é que você me dá em troca? Monóxido de carbono! Eu digo “fica” e você acelera um “vai”. Eu mando você ir tomar um banho e você enche esse peito de orgulho enquanto acomoda nas costas essa mochila encardida de trinta anos. Percebe como assim fica difícil? Pára com isso. Desliga a moto e sobe, vai. Não vai embora, pelo menos ainda não. [o motor continua ligado, sem as aceleradas] Cai na real, encara de frente o fato de que seja qual for o futuro e o passado, nesse momento você ainda não está tão livre assim, quanto pensa. Eu estive conversando sobre você outro dia com a doutora e ela me chamou a atenção pro detalhe que você ainda está bastante inseguro, não está inteiro, que tem uma faceta muito preponderante do teu impulso animal, instintivo, que... [acelerada] Tá bom, tá bom. Calma, deixa eu explicar, é importante pra você. Eu... [acelerada] Eu te amo! [o motor continua ligado por um tempo, sem aceleradas, então silencia-se novamente] Um minuto só, vai... Um minutinho... E eu te devolvo sessenta possibilidades de te dizer as coisas que não tive coragem, que não quis dizer, que achei que você não merecesse, que... [silêncio] ... que eu... [silêncio] ... que eu não podia... [silêncio] ... falar... porque você... [silêncio] ... quer dizer, porque eu... [silêncio] porque eu não sei como dizer... [silêncio] ... isso que eu sinto... por você, pela gente. [silêncio longo. Então o motor é ligado novamente. Ela chora] Mas que filho da puta! Eu te dei o que você queria e agora quer ir embora, não é? Filho da puta! Raça desgraçada. Me devolve tudo, então. Porque essa via é de duas mãos, como sempre. Se eu não te dei é porque você também não me deu e se eu não te fiz é porque, de um jeito ou de outro, você também não me fez e se eu não quis ou não coloquei ou não plantei é porque você também não plantou nem colocou e nem quis. Tá pensando o que. O teu olimpo nem te conhece, meu nego. Você não é tudo isso, não. Dá só uma espiada aí no retrovisor, que por sinal foi eu quem trocou, se não estaria rachado até hoje. Dá uma olhada e me diz o que é que você tá vendo a não ser quase cinqüenta anos de pura banha localizada espalhada sobre uma moto que nem sequer ainda está paga? [acelerada. Ela ri, nervosa] Cutuquei o calo, não foi? Cutuquei, sim, pra ver como dói. Como dói se ver, da noite pro dia, trocada por uma vertigem, por uma miragem, uma promessa de fumaça, uma biscatinha desqualificada que pensa que três ou quatro páginas de garrancho podem ser consideradas roteiro de cinema. Roteirista de merda! [aceleradas insistentes] Papa-anjo é o que você é, seu babaca. E ela, a putinha, não passa de uma papa-múmia. [aceleradas. Ela vasculha a quitinete com ansiedade até encontrar um maço de notas fiscais] Olha aqui, olha. Tá vendo todos esses carnês? O bercinho, a cômoda, aquele maldito urso panda de quase mil reais, o abajur caleidoscópico, o armário, a babá eletrônica, tudo isso fica pra eu pagar, é? É tão simples assim, então? Você vem, me desperta com um beijo de um sono de décadas, me rapta do castelo onde mal ou bem eu tinha quem me sustentasse, me planta a vontade de investir minha grana toda nessa quitinete, me usa de prancha pra surfar nas ondas dessa tua incerteza toda e agora, só porque... [somente motor ligado] ... ah! Você sabe... É difícil, é tão difícil, meu deus do céu, como é difícil! [marcha lenta] Essas coisas aconteceu, caramba. Eu não tenho mais vinte e poucos anos, cara, eu... [motor silencia] ... a doutora deu o toque pra tomar cuidado com a culpa. Numa hora dessa a gente pode acabar caindo no abismo e aí, sabe como é que é, né, subir é que são elas. [silêncio] A gente não pode tentar de novo? Eu posso baixar umas duas capitalizações e a gente faz aquele tratamento que você viu na clínica lá do Sul e, quem sabe, a gente, dessa vez... [o motor liga] Não faz isso, não. Me dá esse minuto, vai. É a chance de a gente se entender e tudo voltar pros eixos. Tudo bem, eu sei que eu fui teimosa e coisa e tal mas, poxa. Que mulher gosta da idéia de ter fazer tratamento pra ser mulher no sentido universal da palavra? A gente aprende, não aprende? Então. Deixa passar o que já passou, vai. Desliga essa moto, desce dela, eu tou falando sério. É muito sério o que eu tou te falando. [dá uma boa espiada janela afora, percebe a platéia] Olha aí, até a vizinhança já está atenta pro “noticiário”. Eita gente que gosta de um assunto, viu! Liga a tevê, minha gente, abre o jornal, lê quem morreu, quem nasceu, mas deixa a vida da gente fora disso. [voltando ao assunto] Sobe, vai, vamos conversar aqui dentro, entre a gente, sem olho gordo nem torcida contra. Sobe. Não boceja, não. Vem cá, sobe. Joga essa mochila velha atrás do sofá, eu prometo que nem ligo. Põe teus pés na mesinha de vidro... não, melhor, no meu colo... faz teu dedão brincar no meu umbigo... eu prometo que até que enfim deixo escapar minha agonia em risada... vem, vai... sobe, eu quero fazer aquele bolo de amendoim que você vivia pedindo pra eu fazer e eu prometo que vou te olhar dentro dos teus olhos de uma maneira tal que a minha alma toda vai fazer o serviço do amendoim, eu prometo... [silêncio. Ela chora, baixo] É que é tão difícil te fazer ver tanta coisa num minuto só! Deve ser assim o tal filminho que o povo diz que a gente assiste no último minuto, que agonia... Eu errei pra caralho. Principalmente porque me meti à besta e fui fingir que estava acertando. Fingi pra você, fingi pra mim... [motor silencia] Colhi o que, agora? [silêncio] Volta. Me devolve o meu chão, vai. E também o teu sovaco, pra eu adormecer. E a tua presença na cama. A tua presença. Só ela é o que mais me desespero em não ter mais. A tua presença. O barulho desse teu molho de chaves saindo do elevador. E o teu jato borbulando pesado na água da privada. E a tua tossida dizendo “amanhã a gente continua”, essas jóias todas, meu bem, me devolve, vai... [silêncio] Eu também tenho medo! [silêncio] Não é justo amargá-lo sozinha... [o motor é ligado] Puta que o pariu! Puta que o pariu! Puta que o pariu que a gente não tem nem o direito de abrir o peito e o dito-cujo já leva embora o perfume, deixando a flor murcha pra trás. Parece criança! [acelerada] Infantil, mesmo. Não gostou? Pois é, meu nego, a verdade dói mas é um bom remédio. Quer dizer que o ronco e a fumaça fedida desse motor é tudo o que você vai me deixar, é? Pois enfia tudo isso no meio do seu... [acelerada] Desculpa! Me desculpa, vai, deixa pra lá. Às vezes, não sei, parece que uma força toma conta de mim e aí eu falo coisas que, não sei, parece que nem sou eu. Enfim, me desculpa, desliga a moto e sobe pra gente conversar. Ah, que cabeça a minha, meu deus do céu, quase eu me esqueço. Eu enviei um conto teu pra um editor conhecido do meu pai e chegou uma resposta por email que eu imprimi lá no trabalho. Sobe aí, toma teu banho e relaxa. Enquanto isso eu procuro onde enfiei esse papel e preparo o bife acebolado e o bolo de amendoim... hein! É um minuto só. [marcha lenta] A gente tem muito pano ainda pra queimar, não tem? Eu te conheço, meu nego, mais do que você mesmo! [aparentando tranqüilidade] No fundo, no fundo você e eu somos farinha do mesmo saco, acho que é por isso que o cosmo botou a gente nessa quitinete, pra gente se olhar no outro, né! Às vezes a gente enfia as mãos pelos pés e chuta o balde sem a menor necessidade, mas isso também faz parte da vida, porque se tudo correr sempre bem, como é que a gente vai pra frente, me diz? Eu te perdôo, meu nego... eu perdôo nós dois! [acelerada] Sabe de uma coisa? Vai se foder! Quer ir, vai. Essa menininha não vai te agüentar nem por uma semana, quando descobrir o que é que está por trás desse sorriso enlouquecedor que você carrega debaixo desse olhar de anjo vivido. Não vai, não. E tem mais, neguinho: te prepara pra vestir o chapéu que você mais merece por estar fazendo isso comigo. Te prepara, neguinho! Não é praga, não. É premonição. [aceleradas] Isso, acelera mesmo, acelera pra valer até fundir esse motor que nem pago está. Esse minuto que eu te pedi ele já é meu, sempre foi, só você não percebeu. É o minuto a menos que você vai levar pro resto da tua vida, que, pelo visto, nem vai tão longe assim, levando em conta a lavagem que você costuma comer nesses botecos por aí afora, e esse teu maldito cigarro e esses tonéis de cerveja e refrigerante e café frio... Vai se foder, matusalém! Teu tempo já passou, ninguém quer saber do que você poderia ter feito na vida. Só eu sei como foi difícil ficar escutando tuas idéias e planos e o diabo a quatro, nesses anos todos. Tudo muito bonito, sempre tão surpreendente, etcétera e tal, mas, me fala, nego: onde foi que desembocou aquilo tudo, hein! Que é que tá aí, construído, palpável, que possa ser considerado um ganho ou uma melhoria pro mundo de hoje? Hein? Nada, neguinho, nada. Você precisa de platéia. Desesperadamente. Mas a platéia se cansa, sabia! Não levanta mais pra aplaudir e, se você quer mesmo saber da verdade, nem sequer aplaude mais. Dorme, quando não se levanta no meio da cena e sai. [aceleradas insistentes] Pára! Pára! Que bobagem, isso tudo, meu deus do céu, que bobagem. Quem sou eu pra julgar você, não é? [aceleradas] É que você me tira do sério. O que custa me dar esse minuto? Me ajuda a ajudar você a nos ajudar, pombas. Vamos conversar, quer dizer, conversar não. Se é conversando que a gente se entende, eu quero que o entendimento vá pro diabo-que-o-carregue, porque eu não quero mais ficar entendendo porra nenhuma, isso dá tédio! [aceleradas] Desliga essa merda! [espiando a vizinhança] E vocês aí, aproveitem essa oportunidade e olhem pra dentro, tem muita roupa suja pra lavar, teia-de-aranha pra desbaratar, sujeira pra limpar, prataria pra lustrar e tudo o mais. Vão, vão! [para ele] Desliga essa merda e não se atreva a me fazer sofrer mais ainda. Você não vai a lugar nenhum, seu irresponsável! [aceleradas] Isso, acelera mesmo. Acelera, acelera, acelera. E não sai do lugar! Pobre da menininha, lá. Que ainda sonha com os castelos que vai conhecer montada nessa garupa aí! [ri histericamente] Coi-ta-di-nha da donzela! Vai no máximo brincar de roda-roda no playground e ainda vai ter que pagar por isso, enquanto quiser continuar curtindo. [aceleradas] Esquece, neguinho. Acelerar não leva a lugar nenhum. E sabe por que? Eu te digo porque. Você ME DEVE esse minuto e por mais que você não queira encarar essa realidade, tua alma sabe muito bem disso e é ela quem te impede de engatar a primeira marcha e partir. E isso que eu estou te dizendo é muito meu, não tem nem uma sílaba sequer da doutora. [aceleradas raivosas] É isso aí, neguinho, é isso aí mesmo. Isso aí tem nome, simples, curto e imensamente grosso: MEDO! É o que a gente sente quando se flagra nua, no epicentro da vida: medo. Vamos aproveitar, vamos... [só o motor ligado] Isso, vem, sobe... Esepra um pouco e me dá esse minuto. Um minuto só. Sobe aqui, sente o cheiro de pavor que sai da minha pele... Lambe, vai... lambe essa minha falta de ar... Me abraça com força e me tira daqui, vai, por favor... [marcha lenta. Silêncio longo. O motor é desligado. Ela apanha um despertador e o ajusta pra tocar em um minuto. A fala seguinte sai exatamente em um minuto] Eu te amo e me perdôo porque te amo e não me amo por amar simplesmente amar sem buscar no teu peito o ar que o meu peito precisa pra pulsar um coração pensado e um pensamento sentido e a vida não vivida simplesmente sem amor nem medo de me perdoar, de te perdoar, de perdoar a falta de perdão e a vontade de ficar e amar e gozar e chorar e ser o que realmente se é sem nada mais do que o que se é e o que se tem passa a ser o que se é quando o que se tem é nada além nem mais nem menos do que aquilo que realmente se necessita pra viver a dois, em dois, por dois, um retrato feliz dois-por-dois, nós dois, ou nós três que poderíamos já estar sendo mas que eu quero demais que ainda venhamos a ser, você e eu e nosso fruto, que ainda está aqui dentro, de mim e de você e dessa quitinete que não tem o menor cabimento de ser só minha, porque a propriedade nada tem a ver com as coisas que a alma precisa pra saber quem realmente se é e... sobe e me come, vai! [o despertador toca, ela interrompe. Silêncio longo. Liga-se o motor] Lembra da plataforma em Lençóis? O pedacinho de chão de rocha, borbulhando de tão quente debaixo daquele sol da tarde e dos meus pés nus. De resto, a sinfonia do vento convidando pro baile da queda... Pra vertigem! A gente cresce demais quando se sente só. Lá embaixo, pequenininho, o poço vermelho de água refrescante me chamando. Eu tenho calor. Eu tenho sede. Por que não, né? Por que não? Plantada na plataforma de Lençóis, no meio daqueles canions todos, açoitada pelo vento e cozida pelo sol, quando é que eu teria coragem de beijar a vertigem na boca e simplesmente me entregar ao vão que antecedia o gozo daquele mergulho? Trinta metros é uma questão de segundos, nada mais que isso. Que nem chegariam a sessenta... [aceleradas, engate de marcha, a moto parte. Cai a luz, sobre apenas o tique-taque do relógio]

Agosto, 2005
biaggiolic@yahoo.com.br

LEGÍTIMA DEFESA

Esta comédia eu escrevi por encomenda de minha esposa, que coordenava um curso de teatro para jovens internos da FEBEM, na capital paulista... Como eram todos meninos, não aceitavam encenar o que quer que fosse se tivessem que fazer "papéis femininos". Então pensei: o que é que eles mais têm, ali dentro? TEMPO!, foi a resposta...

CENA 1 – O RÉU

Música: “Oração ao Tempo” (Caetano Veloso)

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...

Personagens
Juiz, Réu-20, Réu-50, Adv Defesa, Promotor, Secretário (DJ) e Júri (a platéia)

O elenco está na platéia e, um a um, durante a canção, se dirige para o palco, onde arruma o cenário do Tribunal.

Secretário(depois de pausa solene)
Aí, galera, vamo ficá esperto, porque tá aberta a sessão, presidida pelo Meretíssimo Juiz Sr. Cacha Assado. Bóra ficá de pé...
(todos de pé, entra o Juiz, com toga e camisa da seleção brasileira)

Juiz(mandando todos se sentarem)
Aí, malandragem: desencana que a vida engana. Relaxa! Secretário!

Secretário – Demorô!

Juiz – Qual é o caso do Réu?

Secretário – Aí, chefia. Não que eu seja de meter o bedelho na vida alheia, mas dizem por aí que o caso dele é o padeiro da rua de baixo...

Defesa – Protesto, meretíssimo! (confidencial, para o Réu) Você não me disse que era o encanador?

Réu(à platéia) Já vi que tô lascado, aqui...

Juiz – Qual é a acusação, anta? Que é que tá pegando?

Secretário(rap)
Vossa eminência
Com sua devida licença
Tão digníssima presença
Pra esse Júri peço a bença
Pra trazer a essa audiência
Esse acusado de indecência
(para o Réu) Aí, Mané, tome tenência
(para o Réu) Aí, Mané, tome tenência
(para o Réu) Aí, Mané, tome tenência
Fica esperto.
Falei, ô demência?!
(entrega os laudos ao Juiz)

Juiz(lendo) Hum... sei... ta... xiiii... anrã... Ó a do cara, véi... Tá lascado! Bom, vamos à luta, pois somos todos uns filhos da... pátria! Aí, ô Réu: de pé. (Réu se levanta) A casa caiu...

Júri – OH!

Juiz – Crime hediondo...

Júri – OH!

Juiz – Inafiançável...

Júri – OH!

Juiz – Assassinato em primeiro grau!

Júri – OH!

Juiz – ...

Júri – OH!

Juiz – ...

Júri – OH!

Juiz(para o Júri) Bóra mudar a ladainha?

Júri – IH!

Juiz – Melhor. (para o Réu) O Estado te acusa de MATAR O TEMPO!

Júri(vozes sobrepostas) Horror! Em que mundo nós estamos! Pra onde caminha a humanidade! Ó, Pai, por que nos abandonaste? Monstro!

(entra um repórter, explode flash pra tudo quanto é lado, é levado pra fora por policiais. O Juiz martela insistente e ininterruptamente o seu martelo até que tudo silencia)

Juiz – Ó a zuada aí, seus bando de maluco! Na moral, hein! Na moral! (para o Secretário) Chega aí. (Secretário se aproxima e o Juiz lhe passa o bife que ficou martelando durante toda a confusão) Fala pra Chica fazer bem-passado no azeite português e bem acebolado, firmeza?

Secretário(saindo com o bife) É nóis!

Juiz(para o Réu) E aí? Que me diz? Culpado ou inocente?

Réu(filosófico) Meretíssimo! Senhores jurados! Senhor Promotor! Meu estimado advogado de Defesa...

Secretário(voltando) E eu, mal-educado?!

Réu(ignorando) Agradeço esta auspiciosa oportunidade de externar minhas opiniões sobre a acusação que recai sobre meus cansados ombros...

Juiz(para o Secretário) Fundo musical pra embromação... (Secretário providencia)

Réu – Considerando os incomensuráveis prejuízos causados pelo TEMPO à epiderme humana, seja por meio das horrendas desfigurações impostas pelas rugas ou pelos odiosos pés-de-galinha; seja os danos imputados tanto à forma física como à memória, alego LEGÍTIMA DEFESA e, por conseguinte, pleiteio desta renomada Casa o merecido grau de INOCENTE (para o Secretário) Fundinho musical mixuruca, hein!

Secretário – Ó a do cara...

Juiz – É ruim, hein! Bom, com a palavra, a Defesa. Vai que é tuuuuuuuuuuuuua, Jonny Papo!

CENA 2 – A DEFESA

Defesa – Xá conóis! (para o Secretário) Manda a nº 38, firmeza!
(Secretário abre o “Manual de Fundos Musicais para Tribunal”, na página 38, e solta um Kenny G bem surrado) A Defesa chama para depor o RÉU aos 50...

(o Réu se desloca para o local de depoimento. É um cinquentão, barrigudinho, calvo, pastinha na mão e óculos redondinho. Adv Defesa se dirige novamente ao Secretário)

Solta a nº 17, vai! (Secretário solta “Aquárius”, do filme Hair) Agora, a Defesa também chama para depor o Réu aos 20 anos...

(entra outro ator com a mesma cara [máscara?], jovem, sarado, cabeludo, viril, sedutor, cheio de energia, que se senta ao lado do cinquentão. Adv Defesa manda cortar o fundo musical) Então! Certo? Preciso falar mais alguma coisa, senhores jurados? Uma imagem vale mais que mil palavras... Quem é a VÍTIMA, nessa cena? O Tempo, esse carrasco desalmado? Ou este pobre coitado que vocês, aqui, chamam de “réu”?

(leva papel higiênico pro cinquentão, que chora desconsolado no ombro do vintão)

Lava as mágoas, mano... nóis te entende! Cadê? Cadê a glória?...

Secretário(bobeando) Ué! Ela não virou biscate ali na pracinha da Matriz?

Juiz(para o Secretário) Se fecha, bóio! (para o adv Defesa) Vai em frente, Jonny...

Defesa – Firmeza. Cadê a glória? Os ideais? A cabeleira ao vento? O bíceps poderoso? Cadê o tanquinho, senhores jurados? Cadê as cinco-sem-tirar-de-dentro? Tudo roubado, criminosamente assaltado por esse impiedoso crápula, sanguinolento, esse pulha maldito chamado TEMPO! (assobios e aplausos)

Juiz – Tomou sopa de letrinha, hein, Jonny Papo?!

Secretário – To praticamente apaixonado, tá ligado...

Defesa – Então, cambada de jurado. Agora vem comigo na minha mentalidade...
(cena paralela)
O Papy lá do Céu deu o maior trampo pra fazer o mundo, não deu? Penou por cinco dias até que, no sexto, depois de inventá os cuecas, arrasou ao criar a mulher. No sétimo dia, o Veio se mandou pro merecido relax, deixando a gente, aqui, aos cuidados da babá Tempo! É “A Mão que Balança o Berço”, tá ligado!
(se dirigindo ao Réu) Esse homem foi flagrado, em plena segunda-feira à tarde, dando pãozinho pra pardal na pracinha da Matriz. Agora, por isso, está aqui, acusado de “matar o tempo”. Pois eu digo e repito: LEGÍTIMA DEFESA.
(aproximando-se, sedutor, do Júri) Pensem bem, senhoras e senhores... Quem aqui nunca pintou o cabelo, nunca aplicou botox, nunca quis esconder pé-de-galinha, nunca viu as entradas da sua testa virarem retornos, nunca sentiu o bico da teta fazer cosquinha no umbigo nem o pescoço do ganso parecer sanfona aposentada, que atire a primeira pedra!
(pausa) Obrigado a todos... (volta ao seu lugar)

CENA 3 – A PROMOTORIA

Juiz – Aí, Zig Ziroh, manda bala...

Defesa – PROTESTO!

Juiz – Ta, ta, ta... eu quis dizer: manda ver... uffff!

Promotor(depois de uma pausa estratética e solene) FILHOS DE CRONOS!

(espanto, revolta, burburinho geral, indignação, gritos de protesto, etc. e tal...)

Juiz – Aí, Zig! tá na fissura de curtir um desacato à minha autoridade, ta?

Promotor – Na Mitologia Grega, meretíssimo, Cronos é o próprio TEMPO!

Juiz – Sim, claro... eu to sabendo... (ao Secretário) Não seja besta de registrar isso nos autos, hein?!

Secretário – Firmeza.

Juiz(ao Promotor) Vai em frente...

Promotor – A Promotoria também irá interrogar os dois lados do mesmo Réu. Secretário!

Juiz(leva a bíblia até ambos, sobre a qual os dois colocam a mão direita) Juram?

Ambos – Juro!

Secretário(saindo entediado) Firmeza...

Promotor(para o Réu-20) O que é que você quer fazer com o seu TEMPO de Vida?

Réu-20 – Ah, bicho! Eu quero é curtir, curtir e curtir... Amar muitas mulheres! Rasgar o país todo, o continente todo, a galáxia toda na minha moto Harley-Davison! Estudar Astrologia! E tocar violão...

Promotor – E como é que você pretende tornar isso tudo em realidade?

Réu-20 – Vivendo na Paz-e-Amor, bicho...

Promotor(pegando um cronômetro) OK. Estamos esperando. Viva!

Réu-20 – Ei, bicho... Dá um TEMPO!

Promotor – Arrá! Obrigado. (ao Réu-50) O que é que o senhor fez com o seu TEMPO de Vida?

Réu-20 – É! Comprou a Harley-Davison? Comeu a mulherada? Estudou Astrologia? É compositor? Curtiu a vida? Hein? Hein!

Réu-50 – Bom, sabe comé, né... “THE LIFE IS NOT A LITTLE COOK”!

Defesa – Protesto!

Promotor – Protesta o que, mano?

Defesa – O Artigo 13º da Constituição Brasileira determina que, em todo o território nacional, o idioma a ser falado é a Língua Portuguesa!

Secretário(para o Juiz) Ainda mais eu, que cabulei as aulas de Inglês...

Juiz – Traduz aí, ô, folgado!

Réu-50 – “A VIDA NÃO É BOLINHO!”... A rapadura é doce mas não é mole... Querer e Poder, às vezes, não passa de uma rima...

Secretário – Xiiiii...

Réu-20 – Como foi que você usou nosso TEMPO, veio?!

Réu-50 – Improvisando... remediando...

Promotor(para os Jurados) Tão ligado! Ao invés de ver o que o TEMPO faz com a gente, melhor é ver o que a gente faz com o TEMPO... Secretário! Solta a nº 71, vai...

Secretário(soltando) Firmeza...

(Réu-20 e Réu-50 se levantam e, frente a frente, se postam ao centro do palco. Silêncio. Entra tic-tac forte de relógio. Ambos ensaiam passos preliminares de Tango, sem se tocarem e sem despregarem o olhar um do outro. Salientam os efeitos físicos e emocionais causados pela diferença de idade. Coreografia)

Promotor(cantando)
O tempo perguntou pro tempo
Quanto tempo o tempo tem
O tempo respondeu pro tempo
Que o tempo tem tanto tempo
Quanto o tempo tem
(fim do Tango)

Juiz(para o Promotor) Mano... animaaaaaaaaal!

Secretário – 10!

Promotor – Fazemo o que pudemo! Mas a parada é essa, tá ligado. Entre o “farei” e o “fiz” tá o TEMPO! Entre o “quero” e o “consegui”, tá o TEMPO! Entre a bosta e o adubo, tá o TEMPO! Entre o ventre e a cova, a idéia e o fato, a vontade e o ato, tá o TEMPO! Quer um exemplo? Se liga nessa parada, então... Secretário! Solta a nº 22!

Secretário – Tá na faixa!

(cena paralela. Entra um ator, piando e voando)

Promotor – Era uma vez, depois que Deus foi tirar seu relax, um passarinho que... cagou!
(passarinho faz cocô e sai de cena) Pronto! A Natureza, essa hermafrodita! Havia ela própria se fecundado... Plantou uma Sementinha... (ator faz a sementinha) ... que brotou, que cresceu e virou uma linda Árvore da Vida no Paraíso! (o ator vira a tal árvore) ... em cujo galho nasceu uma formosa maçã (aparece a tal maçã no galho) E assim o TEMPO fez o seu trabalho, durante toda uma eternidade... em paz, harmonia e amor... (fundo musical pra paz, harmonia e amor) Até que um dia uma serpente sem-noção resolveu convencer uma Eva-sem-noção a seduzir um babaca dum Adão-sem-noção e lá se foi o Paraíso por água abaixo... (para o Júri) Eu lhes pergunto: a culpa disso foi do TEMPO? (apontando o Réu) Pois dizem que ele é “culpado”. E eu digo SIM, ele é culpado, sim! Mas não de matar o TEMPO, pois ele está além da vida e da morte... E sim de ter a ARROGÂNCIA de querer ser imortal! (pausa silenciosa e estratégica) Mas, cá entre nós, senhores do Júri: desde quando “arrogância” é privilégio só deste pobre mortal? (pausa) Sem mais perguntas, meretíssimo. (volta ao seu lugar)

CENA 4 – O JÚRI

Juiz(ao Júri) Bão... antes de mandar vocês pro inferno...

(burburinho geral de surpesa, indignação, espanto e tudo aquilo que já aconteceu várias vezes, aqui...)

Epa! Que é que ta pegando, gente fina? Tão estranhando o quê, posso saber? Por acaso não é um “inferno” essa pretensão humana de querer JULGAR a vida alheia, como se a gente fosse “perfeito”? Ah, tá! Então quer dizer que esqueceram que pimenta no fiofó do outro é refresco, né?! Vai nessa... Vamo em frente, que atrás vem gente... Passo a palavra ao Réu.

Réu(levanta-se, olha para um lado e para o outro, ajeita o nó da gravata, tira poeira do paletó, criando suspense, então se pronuncia) ALIA JACTA EST! Obrigado. (senta-se. Pausa)

Juiz – Bão... o Júri tem 4 horas para resolver esse babado, falei? O Tribunal entra em recesso. (bate o martelo. Pausa curta. Passa um ator com uma plaqueta onde se lê: “QUATRO HORAS DEPOIS...”)

Secretário – Bora, cambada, de pé! Ó o meretíssimo aí, geeeeeente!

Juiz – Ai, gente boa do Júri. Vocês chegaram a um veredito?

Jurado(ator na platéia) Chegamos, sim, patrão! Com nóis a coisa rola, tá ligado?

Defesa e Promotor – Protesto!

Juiz – Aceito! Se liga aí, ô mané...

Jurado – Mané é o colete-do-padre-inácio, tá ligado! Tá pensando o quê? Que JULGAR é coisa fácil? Isso não é coisa pra frouxo, não. De duas, uma: ou a gente é santo ou finge que é. Seja um ou seja outro, Deus dá uma banana pra gente. Sabe o que é que Ele diz?

Deus(ator, de passagem) “QUER JULGAR TEU IRMÃO? VAI SEM MIM... FUI!” (sai)

Juiz – Bonito!

Secretário – Eu!?

Juiz – Mas demora, hein!

Jurado – É aí que a gente vai pro DESERTO. Vida de jurado é vida besta, meu irmão... Deserto!Sabe o que eu acho? Que devia ter “faculdade de jurado”! Com direito a pós-graduação e mestrado, porque não é coisa pra amador, não... Tem que estudar Filosofia, Sociologia, Psicologia, Teologia e muita História pra entender como é que o mundo é... E, depois, o candidato devia se trancar por 2 anos numa sala de espelhos e ficar lá, até cansar de fugir de si mesmo e descobrir, no fim das contas, que a maior ilusão da vida é acreditar que existe o “outro”!

Promotor e Defesa – Protesto!

Jurado – Sai pra lá, seus urubus!

Juiz – Aí, chefia. Se não for ofender vossa santidade, eu poderia saber se vocês chegaram ou não chegaram a um veredito?!

Jurado – Chegamos, sim. Este Réu é INOCENTE... e CULPADO! Como qualquer ser humano vivente, diabo! E ponto final. Bora comer uma pizza... (sai)

Juiz(bate o martelo) Caso encerrado!

CENA 5 – A SAIDEIRA

(sambinha no pandeiro)

Julgar ou não julgar
Eis a questão
Absolver ou condenar
Isso é obra da razão
Mas entender é enxotar
As cobras do coração
Ninguém é só inocente
Nem só culpado é também
Já basta a Consciência
Pra usar o mal a serviço do Bem
Julgar ou não julgar
Eis a questão
Absolver ou condenar
Isso é obra da razão
Mas compreender é enxergar
Com os olhos do coração

biaggiolic@yahoo.com.br

A MENINA E O VENDEIRO

Esta montagem estreou no dia 13 de dezembro de 2008, na Praça da Matriz, em São Caetano do Sul, tendo o autor e sua filha no elenco, sob direção de Ciléia Biaggioli.

Na praça pública, uma Menina cantarola, enquanto prepara um bolo de aniversário, sobre o qual coloca uma vela com o número 2008. Ao seu lado, uma árvore de Natal. Surge o Vendeiro, um velho mascate com uma mala enorme. Todo cheio de badulaques e belembengues, ele se instala na praça, de olho na Menina. Então, abre sua grande mala, de onde saem estímulos de venda e apelos de consumo mixados com trechos de jingles natalinos e entretenimento. Aos poucos, esses sons todos vão se transformando em uma cantiga única, encantadora, que atrai a Menina para perto da mala...

MENINA (canção natalina)

VENDEIRO
(cantando)
Salve, Salve, Freguesia
Pr´esta mala abram alas
São ilusões, querências
São tentações pro dia-a-dia
É por seu dinheiro
Que meu coração bate o dia inteiro
Por isso, preparem suas carteiras
Muito prazer, eu sou o Vendeiro

Olá, doce Menina...

MENINA — Olá, senhor Vendeiro. Eu sou a...

VENDEIRO — Sim, a Menina, eu sei, eu sei, eu sei... Em que eu posso ajudá-la?

MENINA —Eu quero saber onde é que eu encontro...

VENDEIRO — Aqui! Aqui você encontra um pouco de tudo e de tudo um pouco... Nossas ofertas são im-per-dí-veis! Para todas as ocasiões. Ano Novo, Carnaval, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Namorados, Dia dos Pais, Dia da Pátria, Dia das Crianças, Halloween, Dia dos Mortos, Natal e Reveillon! [pausa, reflexivo] É pouco. Precisamos inventar mais datas...

MENINA — Seu Vendeiro...

VENDEIRO — Vai no débito ou no crédito?

MENINA[com o bolo na mão] O quê?!

VENDEIRO — Que distração! O bolinho de aniversário! Mil perdões, freguesa...

MENINA — Freguesa?

VENDEIRO — Vem por aqui, vou levá-la ao nosso departamento para festas e eventos. Temos tudo o que você precisar, veja. Confetes! Serpentinas! Buzinas! Bolhas de sabão! Recreadores! Palhaços! Vai parcelar ou pagar à vista?

MENINA[ignorando] Eu mesma fiz esse bolo, sabia? Tem balas de confeito... tem chocolate feito em casa...... eu deixei a massa uma noite inteirinha na janela, pra ela ser beijada pela Lua e receber o brilho de todas as estrelas... está uma delícia! A velinha! Eu mesma que fiz. Derreti um monte de velas e depois esculpi a idade do aniversariante... [voltando ao Vendeiro] É por isso, senhor Vendeiro, que eu preciso muito descobrir onde é que...

VENDEIRO[a si mesmo] Cabeça-dura! É uma criança! Você quer FANTASIA, não é? Mas claro, claro... Venha comigo, Menina, vamos ao nosso departamento de fantasias, brinquedos e dvds! [vão] Fique à vontade! Pode escolher, não se acanhe, viu... temos os melhores planos de financiamento do mercado! [pausa]

MENINA [zonza, grita] Não!!!!

VENDEIRO — Parcelamento?

MENINA — Pára!!!

VENDEIRO — Cartão de crédito e não se fala mais nisso, fechado?

MENINA — Chega!!! EU SÓ QUERO ME ENCONTRAR COM O ANIVERSARIANTE, entendeu?

VENDEIRO[no walk-talk] Atenção, QSL. Tem alguém por aí fazendo aniversário hoje, QSL? Ninguém? Positivo. Câmbio Final. [para a Menina] No nosso setor de “Achados & Perdidos” não tem ninguém fazendo aniversário no dia de Natal, consumidora...

MENINA — Pára de me chamar assim! Não sou consumidora, nem cliente, nem freguesa... Meu nome é...

VENDEIRO — Menina, eu sei, eu sei, eu sei...

MENINA[tentando se controlar] Eu vou ajudar você... O que é, o que é? Foi anunciado por uma Estrela...

VENDEIRO — Fácil! O divórcio da Madona!

MENINA — Não!

VENDEIRO — O casamento da Sandy?

MENINA — Não! Vou te dar outra dica... O que é, o que é? Nasceu entre os humildes e foi reconhecido por Três Reis...

VENDEIRO — Fácil! O Pelé! Não? Dá outra dica, vai...

MENINA — Começa com a letra M e termina com Enino Jesus de Nazaré?

VENDEIRO — Espera aí... me deixa pensar...

MENINA — O MENINO JESUS, senhor Vendeiro!!!!

VENDEIRO — Ahhhh, tá... E o que você quer? Encontrar o Menino Jesus?

MENINA — Isso!!!!

VENDEIRO[pra si] Coitadinha, tão novinha...

MENINA — Eu quero levar esse bolo pra ele soprar essa velinha de 2008 anos...

VENDEIRO[para a platéia] Menininho velhinho, hein?

MENINA — O que o senhor disse?

VENDEIRO — Nada! Eu disse que sei exatamente onde é que você pode encontrá-lo, portanto, Menina, hoje é o seu Dia de Sorte! [anotando em seu caderninho, enquanto caminha, seguido pela Menina] Eita, essa é uma boa idéia pra data comemorativa, hein... O Dia da Sorte.

MENINA — 29 de novembro...

VENDEIRO — O que?

MENINA — O Dia da Sorte!

VENDEIRO[rápido] Quer comprar um Trevo de Quatro Folhas? [a Menina faz cara feia] Tá bom, tá bom... Vem comigo. [mostra um Menino-Jesus em porcelana de grife] Aqui está ele. Marfim importado! Vou deixá-los a sós um pouco. Se precisar, é só me chamar, está bem? [se afasta, com cortesia comercial. A Menina se aproxima, incrédula. Olha demoradamente a peça] É pegar ou largar!!! [começa a ficar furiosa] Então, que tal esse Crucifixo da Jemps Style, todinho cravejado de diamantes escoceses?... [mais furiosa ainda] OK. O que me diz desse Santo Sudário da Pilps Screem, simplesmente des-lum-bran-te, hein? As três peças juntas saem pela bagatela de...

MENINA — MONSTRO!!!

VENDEIRO — Isso é no setor de halloween!

MENINA — Olha pra minha cara...

VENDEIRO — Hummmm... cara de fome! Venha comigo até a nossa incrível Praça de Alimentação [oferece um monte de sanduíches e refrigerantes das grandes marcas]

MENINA[deixa-se cair no chão e chora, chora muito, então se afasta para perto do bolo e da árvore de natal e fica ali, por um tempo, cantando tristemente “Parabéns a Você”...]

VENDEIRO[oferecendo lenço] Tome. Cortesia da casa. [ela ignora, ele fala para si] Xiii... Acho melhor eu ir cantar em outra freguesia, que desse mato não sai mais coelho, não...

MENINA — [tem uma idéia e corre até ele] Ei, espera aí, senhor Vendeiro, espera!

VENDEIRO — Em que posso ajudá-la, freguesa?

MENINA — Me leva até o Papai Noel, senhor Vendeiro! Ele vai saber me levar até o Menino Jesus!!!!

VENDEIRO[depois de uma pausa] É pra já!!!! Por que você não me pediu isso antes... [venda os olhos da Menina] Mas tem que ser surpresa, certo? Espere aqui um minuto e eu vou chamar o Papai Noel... [se fantasia como Noel]

MENINA — Puxa vida! Muito obrigada!!! Obrigada mesmo!!!! Eu sempre achei o senhor muito gente fina, viu!!!

VENDEIRO-NOEL[entrando, batendo sininho] Rôu, Rôu, Rôu!!! Feliz Nataaaaalll...

MENINA [tirando a venda e lançando-se ao colo do Bom Velhinho] O bom velhinhooooo!!!! [ela o enche de beijos, carinhos e abraço]

VENDEIRO-NOEL[tentando se esquivar] Minha menina, eu quero saber...

MENINA — Já sei! Se eu fui boazinha durante o ano, né? Às vezes, sim. Às vezes, não. Esse negócio de ser só bom ou só mau é coisa de vilão-e-galã de novela, não existe na vida real. Eu não! Errei, descobri o erro, corrigi e fiquei pronta pra erros novos. Então, Papai Noel, acho que, nesse ano, fui humana. Serve?

VENDEIRO-NOEL — Tome uma balinha! Rôu! Rôu! Rôu!O que é que você quer ganhar do Papai Noel? Rôu! Rôu! Rôu! Um brinquedo importado?

MENINA — Não!

VENDEIRO-NOEL — Rôu! Rôu! Rôu! Uma bicicleta mega-plus?

MENINA — Não!

VENDEIRO-NOEL — Rôu! Rôu! Rôu! Um computador de última geração?

MENINA — Não!

VENDEIRO-NOEL — Rôu! Rôu! Rôu! O que é que você quer, então?

MENINA — Que o senhor me leve até o Menino Jesus, pra eu cantar Parabéns pra ele!!! [levantando-se] Vamo-lá! Me leva até ele, Papai Noel!!!

VENDEIRO-NOEL — Não... é que não ta fácil viajar pro Céu, sabe! O aeroporto está um caos... São Pedro anda barrando a entrada da gente no Céu... E Nossa Senhora não gosta muito do filho dela brincando com criança dos outros... E...

MENINA[furiosa, arranca a máscara do Vendeiro] SEU MONSTRO!!!! Jesus tinha razão, quando expulsou vocês da porta do Templo, em Jerusalém, seus, seus...

VENDEIRO — Mas, Menina... O que é que tem de errado, nisso? Todo mundo faz isso, a televisão, a publicidade, o comércio...

MENINA — Nem mais um pio! Vai, me diz: onde é que você enfiou o Papai Noel, hein?

VENDEIRO — Ah, Menina, me deixa em paz!!! Que chatisse, ô! Na tua idade, pra comer de noite eu tinha que batalhar o dia todo, sabia? Só eu sei como foi dura a minha batalha pra aprender a ler e a escrever e, depois, juntar meus caraminguás pra começar a minha vendinha e ganhar mundo! Sozinho, viu! E agora vem você com esse trololó?! Larga do meu pé, chulé! Quer comprar? Eu vendo! Não quer comprar? Tchau-e-bença! Fui. [começa a fechar a mala pra se retirar]

[pausa]

MENINA — Qual é o seu nome, senhor Vendeiro?

VENDEIRO — Por que quer saber?

MENINA — Nunca ninguém quis saber seu nome? Eu quero saber, fala...

VENDEIRO — Meu nome? Meu nome é... Vendeiro!

MENINA — Não! Quem é o senhor, seu Vendeiro?

VENDEIRO — Tibúrcio Malfadado da Pompa Jr. ... [pausa] E o seu, Menina?

MENINA — Tibe.

VENDEIRO — Tibe?

MENINA — É, papai sempre me chamou assim... Um dia ele acordou, me deu um beijo e disse que ia em busca de um mundo melhor pra gente... Faz tempo, isso!

VENDEIRO — E a sua mãe, Tibe?

MENINA — Ah, é ela que faz essas bolas de árvores de Natal pra gente vender aqui na praça, cantando músicas natalinas...

VENDEIRO — Bonito...MENINA — As bolas de Natal?

VENDEIRO — Não, a Música...

MENINA — Pra mim uma coisa não existe sem a outra, sabia? Vamos cantar?

VENDEIRO[confuso] Vamos! Quer dizer, não sei... Não, não. Eu tenho que vender, vender...

MENINA — Seo Tibúrcio, o senhor vive pra vender!

VENDEIRO[apontando as bolas de Natal] E você?

MENINA — Eu vendo pra viver, ué... Vamos cantar!

VENDEIRO — Tá certo, eu me rendo.

MENINA — Oba! [apontando o violão] Toca, seu Tibúrcio, toca!

VENDEIRO[junto com a Menina]
É Natal, é Natal
Um feliz Natal
Esta noite eu vou a Belém
Levar um buquê de flores
A Jesus Neném
Com todas as cores
Num arco-íris que reluz
Enfeito a manjedoura
Do Menino Jesus
É Natal, é Natal
Um feliz Natal

OS DOIS — [erguendo o bolo com a vela acesa na direção do céu] Feliz Aniversário!

biaggiolic@yahoo.com.br


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