24/10/2008

CRÔNICA

NA MOSCA

Tranquiliza-me demais não pensar. Pena que isso acontece raríssimas vezes, não é?

Outro dia mesmo, assim, sem querer, sem mais nem menos, sem eira nem beira, não é que a coisa aconteceu? Eu quase... quase... eu quase que pensei sobre o que estava acontecendo, mas, graças ao Vácuo, isso foi controlado a tempo... e o melhor: não por mim! Nem me pergunte, por favor, por quem teria sido, que isso me obrigaria a pensar no assunto e, convenhamos, estou em tratamento e prometi a mim mesmo "Só por hoje não pensarei sobre o pensamento". Agradeço sua compreensão.

Mas, voltando à vaca-fria, foi um momento tão-tão, que eu nem me atrevo a explicá-lo, viu! E fica fácil entender porque ajo assim... Então continuemos. Só sei que não me vi, não me ouvi, não me senti nem me cheirei, nem tampouco me lambi... mas juro por tudo que for mais sagrado pra quem necessitar de juramento meu que EU SABIA MUITO BEM o que estava acontecendo, comigo...


Putz! Olha aí eu começando a pensar no assunto... Ô, vício! Também, pausa! Que idéia foi essa de nos darem o pensamento e nos deixarem à própria sorte até descobrirmos como escaparmos dele, hein? Digo, de suas armadilhas, ora pois. Mas, nananinanão, violão! Hoje não! "Só por hoje não pensarei no pensamento!"

Eu me lembro que, naquele dia, foi uma mosca, uma mosquinha assim, ó, que me catapultou praquele Nirvana. Juro por tudo. É porque não suporto mosca! Bicho chato, insistente, inconveniente e desafinado! Perdi a conta de quantas noites nesse quase meio-século de vida, eu me enfiei em batalhas homéricas contra essa praga chamada Mosca! Sim, justiça seja feita: pernilongo é bem pior, que nem luz apagada faz sossegar. A mosca pelo menos encosta num cantinho e ali passa um teco do seu curto dia de existência neste planeta. Mas, um fiapinho de luz de nada, pronto. Lá vem ela, e não se contenta em arrepiar meus tímpanos, não. Ela adora brincar de rasante na minha pele euro-branquela-sem-pelo-e-sensível — o que em nada acaba se diferindo da zumbição nas orelhas, concorda? Pois é.

Mas não vamos desviar o assunto, porque falta de foco é cilada na certa. Eu dizia que foi uma mosca que me catapultou pro estado de não-pensamento, naquele dia, correto? Foi, sim. A desgraçada na certa era uma terrorista disposta a encontrar suas 72 virgens depois de acabar com o meu imperialismo sobre o reino das pobres moscas.

A dita-cuja conseguiu o feito inigualável de dar um rasante certeiro passando raspando nas minhas narinas e indo chocar-se frontalmente com o buraco peludo da minha orelha esquerda. Ahhhhh! Simplesmente estagnei geral. Não consegui fazer mais nada a não ser odiá-la com todos os póros do meu corpo. Nada. Até mesmo a coceira enlouquecedora foi auto-saciada por algum mecanismo metafísico, pois, juro por tudo, nada mais que um ódio hodiendo e horripilantemente escabroso, dos pés à cabeça, foi o que senti naquele momento.

Esse estado intermediário não deve ter durado mais do que alguns segundos (eternos, sem dúvida). E, depois, hummmmmmmmmmmmm... Entrei "lá"!...

AGORA! Agora mesmo, sem um segundo a mais nem a menos. Agora pleno, total. Era eu mais a mosca. Era a mosca comigo. Em mim. Eu era a mosca e a mosca era eu. Não tinha nada que pudesse classificar, catalogar, explicar, denotar, conotar ou seja lá o que for, capaz de me tirar daquela absurda plenitude total e geral. Foi então que eu entendi meu próprio corpo como uma fronteira, apenas. Deve ser isso que os orientais tanto buscam, em suas meditações... que os xamanistas transitam em seus transes... que os evangélicos vivem em seus exorcismos... que os espiritualistas experienciam em seus transportes... enfim... deve ser isso...

O problema é que, alheia a isso tudo, a desgraçada resolveu me oferecer um outro rasante e, desta vez, atrevida, pousou sobre meu lábio inferior, boquiaberto que estava...

Fazer o quê? Não faz parte da minha cadeia alimentar mas nem tudo tem que ter explicação nessa vida, certo? Eu a transformei em merda...

Pagamos o preço! Ela e eu...

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