14/10/2008

CENAS TEATRAIS

eu adoro andar de trem... nem tanto pelo conforto que eles finalmente estão oferecendo a nós, que sempre o merecemos, mas mais por conta dos infindáveis estímulos que seus vagões me oferecem para escrever... Estas três primeiras cenas estão à disposição, o que significa que este é, no fim das contas, um "work´n´progress"...!

CENAS DE TREM

CLEODÉCIO, O FLAUTISTA
... e tem também o Cleodécio, não sei se vocês lembram dele... É aquele nanico, que geralmente aparece no terceiro vagão e, pra ladainha, mal espera fechar a porta, de tão acostumado já está. Calça tergal sem vinco e tão manchada que as manchas nem aparecem mais, camiseta de político debaixo da camisa de gola e sacola a tira-colo, com bonezinho do Coringa com a aba caindo sobre o olho esquerdo. Então, é ele. Parece que tá sempre com o olho fechado, sabe. Mas é daquele tipo de gente meio bruxão, que mesmo de olho fechado põe na gente a sensação de tá sendo olhado de perto, no fundo do lado de dentro... Tem gente assim nesse mundo, já reparou? Pois é. É o caso do Cleodécio, que entra no vagão e já é uma farra só de ver o corpo dele se inteirando com o balanço do trem, os pés descalços nas havaianas, o nanico fuçando a sacola pra tirar sua flautinha doce do meio daquilo tudo que ele traz ali dento, blusa de frio, uns tomates e uma papelada que ele diz ser tudo receita médica... Uma flautinha babada daquela que a criançada compra em papelaria, dá dois real e ainda vem troco. Mas tudo bem, que, mais que a flauta em si, o que mais importa é a Música, né! Mas é aí que vem a parte-dois da farra: é tiro-e-queda, o Cleodécio fatalmente dá uma boa resmungada da vida (crente de pedra que ninguém tá ouvindo) e leva a flautinha pro lado direito da boca. E aí, sem mais delonga, ele tasca um robertão da fase áurea, do jeito que só ele imagina, acompanhado pelo seu pé esquerdo no chão e pelo chacoalho das receitas na mão esquerda, que é com a que o miserável ainda colhe as moedas do povo. Graças a Deus o “concerto” não dura mais de minuto, logo o nanico vem com a cantilena de anteontem: [voz do Cleodécio] “É isso aí, minha gente, foi só uma palhinha. É brincadeira mas é sério, viu. Eu tô pedindo a sua moeda é pro marmitex e também pro meu colírio, que toda vez que eu vou comprar parece que a farmácia quer que eu deixe meus olhos lá, tão caro que parece que tô pagando duas vez. Mas meus olhos tão ruim, os coitado, mas isso é outros-quinhento, que vocês não vão querer saber, né...” Aí o Cleodécio leva de novo a flauta pro canto da boca e rasga um Raul [assovia um trecho do “Quem não tem colírio”], ainda acompanhado pelo seu pé esquerdo, num ritmo que só o nanico entende. [Cleodécio] “Mas eu não uso óculos escuro porque, se não sou beleza, também não sou maluco. Então, como quem vê cara não vê coração, eu vou pedindo a sua ajuda pra forrar a barriga e o ladrão da farmácia...”. E lá vai o Cleodécio, tocando o mesmo robertão com uma só mão...

ARACI, DA LIMPEZA
Outro dia eu tava no quinto vagão, lendo um conto do Tchécov, sentado no chão, bem naquele vão maravilhoso, reservado pras cadeiras-de-roda, sabe, que até ar condicionado tem. Ainda bem que cadeirante é coisa que não abunda na linha que me serve. Naquele dia, aquele pedaço do trem era um oásis de secura naquele vagão ensopado de pés molhados de chuva... Mas fala a verdade se não é chique demais trem em dia de chuva! Tem um quê de Europa, não tem? Eu nunca fui lá na Europa mas nem precisa, pois cansei de ver isso no cinema e nos livros... O silêncio, o chacoalho quase silencioso desses vagão de hoje em dia, os passageiro com roupa de frio e um monte de gente lendo... Às vez, eu fecho os olhos e fico imaginando que a voz vai anunciar “Estação Dinamarca”... “Estação Paris”... “Estação Dublin”... ou, então [clima de terror], “Estação Treblinka”!!!! E ainda tem gente por aí dizendo que o povo não gosta de ler... Olha, até na hora do rush esse tom euro-chiquetê me deixa feliz, sabia? Mas, nesse dia, quando a porta abriu na terceira estação, esse clima todo foi pro beleléu, assim, feito bolhinha linda de sabão espatifada na parede crua. Como pingo de gordura no lençol de cetim dourado... Como discurso de político num contato imediato de terceiro grau... Enfim, já deu pra perceber o drama, né? É que entrou no vagão a Araci, da empresa da limpeza. Só pra você ter uma idéia da tijolada, o povo conseguiu abrir um clarão no meio do vão entre as portas. A Araci é uma neguinha que não tem mais que metro-e-meio de altura mas é daquele tipo de gente que, só de respirar, já tira o ar dos outros. O vagão nem tava lotado mas, também, se tivesse, ia tudo dar no mesmo, com a aparição daquela “entidade” ali dentro, rastreando o chão com visão de 360º, com olho de microscópio mesmo, de onde nem titica de bactéria escapa! Pois quando esses olhos vieram lá do outro lado na minha direção, minha virgem-santa que eu nunca me levantei tão rápido daquele chão. E foi na hora mais certa, viu. Porque os dois canhões da cara da Araci miraram em cheio um rapazote distraído na leitura (não era um Tchécov, mas um horóscopo, o que também não fugia tanto assim do charme europeu). “Je vous salue Marie”, que quando a Araci se deparou com o pobre diabo sentado naquele chão, juro que, na minha vida toda, eu nunca ouvi tamanho silêncio... [Araci, puxando a água com o rodo] “Mas é, viu! Mas é! Quer dizer, então, que o Armagedon chegou e o Pai Eterno não me avisou, foi? Mas eu posso saber que pardieiro é esse que tão pensando que o meu vagão é? A casa de vocês pode ser a pocilga que vocês quiser, mas não o meu vagão, que é lugar pra gente de bem, correta, educada, gente fina, viu! [para o rapaz] Você tá me compreendendo, seu... infiel? Eu acho é bom, que eu não vou falar duas vez. Então presta atenção... [usando o cabo do rodo para apontar] AQUI: CHÃO. AQUI: BANCO. AQUI: APARADOR. Logo... Aqui: Bicho! Aqui: Gente! Aqui: Civilizado! Tu tá me entendendo, gentio? Olha só pra você, tome intento, vergonha na cara, ponha-se no seu lugar, aprenda o que é respeito, selvagem! E SAI DO MEU CHÃO!”. E tudo isso, minha gente, no trecho entre uma estação e outra, porque foi só a porta se abrir na estação seguinte, que a Araci saiu curvadinha, desejando “Paz-de-Deus” a todos...

SÍSIFO, O PREGADOR
Mas tem dia que não tem jeito e a gente nem marca toca mas é a toca que marca a gente, viu. Foi o caso! O rush. E o termômetro tá na catraca da transferência do metrô pro trem. Um funil de bico estreito, que é feito de propósito, pra dar tempo do trem absorver tanta gente. Faz parte. Mas é um exercício e tanto, ah, se é! Sabe como é que eu me sinto, nessas horas? Cavalinho de carrossel. Sabe como é, né? Girando sempre no mesmo eixo, com a mesma música, que de tão antiga até parece novidade, sabe? Levando a alegria dos outros no lombo... Pois é. É assim que, às vezes, eu me sinto no trem: acordo, vou daqui pra ali, dali pra acolá, depois volto pra ali e dali volto praqui. [imita o cavalinho de carrossel assobiando a musiquinha] É aí que eu me lembro sabe de quem? Do Sísifo! Tem aquele da mitologia grega, condenado a carregar, todo santo dia, uma pedra até o alto do morro pra, no fim do dia, a pedra rolar morro abaixo e tudo começar de novo no dia seguinte... É até meio por aí que eu me sinto... mas acho que nem tô sozinho nessa. Mas o Sísifo que eu tô falando aqui não é o da mitologia, não. É daquele desgramado que adora a hora do rush pra pregar a palavra de Deus no meio do vagão lotado (geralmente no 2), que é o que eu costumo pegar porque me deixa pertinho da roleta de saída e que, nessa hora, já sai estufado da estação inicial! O que mais me irrita sou eu mesmo, que vira-e-mexe esqueço do Sísifo e, por hábito, me enfio no 2. O infeliz tem metro-e-noventa de altura e quase um, de largura, um vozeirão do Cão e uma vontade louca de ser ouvido (como acontece com gente assim, na maioria das vezes). E, pra completar o meu azar do dia, o único lugar livre que eu encontrei pra eu me sentar foi um teco de chão que me colocou entre uma bunda imensa e uma anca ossuda, bem próximo de um molequinho sardento com olhar de faísca e a menos de dois metros do infeliz do Sísifo. Eu nunca rezei com tanto fervor pedindo pra Deus impedir o fechamento daquelas portas e a partida do trem. Mas desde quando Deus faz plantão na hora do rush? [voz do maquinista liberando a partida, citando o destino do trem e a campainha de fechamento das portas. Sísifo] “Na paz do Senhor Deus, amém?! (Pro meu desespero, sempre tem alguém que responde o tal do "amém"!) Do Deus de todos nós, meus irmãos e minhas irmãs, o único, o onipotente, o onipresente, o onisciente...” Bem nessa hora o molequinho sardento gritou no colo da mãe: [Molequinho] “Que que é onisciente, mãe?”. Raposa velha, o Sísifo não perdeu tempo... [Sísifo] “É ser Deus! Que sabe tudo, que tudo vê e tudo pode!”. [Molequinho] “Ô, mãe. Quem ensinou tudo isso pro Deus?”. A coitada da mãe, uma gorduchona com a cara escondida no fundo duma Revista Capricho, nem respirava. [Sísifo] “Deus sempre existiu e sempre existirá! É o princípio, é o meio e é o fim...”. Aí não teve jeito, que o Sísifo chamou o Capeta pro pau, que gritou sei lá de que fundão do trem: [Voz anônima] “Viva Raul!”. O raposão do Sísifo mandou aquele risinho de quem acredita piamente que o que vem debaixo não lhe atinge, sabe? Pegou o pentinho de osso e penteou as mechas com uma desenvoltura que não rimava nada com a hora do rush. E soltando o vozeirão por cima do destino nada celestial que alguém lhe desejou, o pregador inundou o trem com um Apocalipse de fazer tremer o garoto sardento, que nem pestanejou e mandou o dedo médio pra direção do Sísifo. [Sísifo]

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